É estranho
como nós, muitas das vezes, não nos conhecemos a nós próprios. A nós mesmos.
Melhor do quem para saber de que matéria são feitos os nossos traços
característicos senão nós mesmos? Mas não é assim, pelo menos comigo. Há muito
que já descobri esta deficiência de me não saber encontrar dentro de mim mesmo.
Quem és tu Pedro? Não sei. Isto a propósito da revelação que uma mulher fez
sobre mim. Foi entre a joelhada que recebi nas partes baixas da minha ex-mulher
aquando do divórcio e o Amor sentido da São quando a conheci passados três
anos. Ela chamava-se Graça, uma professora (obrigada professora…) cujo mérito
foi só esse, o da revelação de que eu sofria de carência afectiva. De muita. E
eu parvo ali a olhar para ela. Quê? Nunca tinha ouvido tal conjugação de
palavras.
E a
professora.
-Sim menino
Pedro, vejo pelos seus cadernos que o menino sofre de carência afectiva, sabe
ou não?
E eu de pé
na minha secretária sem saber o que dizer, de boca aberta.
-Sabe ou não
sabe?
E o meu
colega, responde, diz qualquer coisa. E eu sem saber o que dizer. O que é isso
de carência afectiva, perguntei-lhe baixinho. E o meu colega, sei lá, mas diz
qualquer coisa. Inventa.
-Então
menino Pedro, estou à espera.
Tás lixado,
só páras no quadro se não dizes nada, insistia o meu colega. Mas que raio de
palavras eram aquelas. Ela nunca tinha ensinado aquilo e agora estava a fazer
perguntas sobre essa matéria. Mau! Isto assim não é justo. E eu já me estava a
ver no quadro preto e a levar grande seca, mas não.
-Bom, sendo
assim, parece que o menino vai ter trabalhos para casa. Amanhã vai-me trazer
uma redacção sobre o tema “Carência Afectiva”. Ouviu?
-Ouvi sim
senhora professora Graça.
E vim para
casa magicar no assunto.
Sentei-me no sofá a tentar descobrir como é que a
senhora professora Graça tinha chegado a esta conclusão. Assim sem mais nem
menos. E logo ali à frente de toda a gente. Sou muito carente, afectivamente
falando. Mas notava-se assim tanto? Seria no cabelo, na cara, no modo de andar,
no falar, nos olhos? Fui à casa-de-banho olhar-me ao espelho. Não notei nada de
especial. Seria o cabelo a ficar branco. Se calhar só podia ser isso. Tive uma
infância normal, por isso… Ninguém me batia a não ser a minha irmã mais velha
que depois apanhava a dobrar, dos meus pais. Tive Mãe e Pai. Perdão, tive Mãe e
um senhor que morava connosco a quem eu chamava de pai. Via-o muitas vezes a
ler o jornal e a ver televisão. Não me lembro de ele brincar comigo. O meu avô
sim. Brincávamos muito. E dava-me chocolates, mas também porque era rico, tinha
muito dinheiro. O meu pai não podia, era pobre. Por isso não me podia dar
chocolates. O meu avô, quando não ia com ele ao café ou porque não me apetecia
ou se estava a chover muito ou por qualquer outra razão, trazia-me quase sempre
um guarda-chuva de chocolate da “Regina” e vinha pô-lo na minha mezinha de
cabeceira. Eu ficava todo contente. Deixava-o sair do quarto e acendia a luz
para ver o chocolate. Mas o meu pai levava-me todos os domingos de manhã à
baixa ver as montras das lojas de brinquedos, antes de ir para a Brasileira
estar com os amigos. Não me comprava nada porque estavam fechadas mas eu via as
últimas novidades da indústria de brinquedos e já ficava feliz. Ele não me
levava à baixa. Eu é que ia com ele, que é diferente. Não era como o meu avô
que me levava com ele ao café ao sábado à noite. O meu pai não. Ele não me
dizia, vens Pedro? Ou, já estás pronto? Ou, vamos embora? Não, ele vestia-se,
arranjava-se tomava o pequeno-almoço e depois saía de casa. E eu se queria ir
com ele tinha de me vestir e tomar o pequeno-almoço logo que ele se levantava
para depois ir para ao pé da porta esperar que ele saísse para ir com ele.
Porque se eu por acaso estivesse na casa-de-banho a arranjar-me quando o meu
pai fosse a sair. Saía e prontos. Xau Pedro. Ficas em casa que é um mimo. E
depois eu nem tinha lata de ir atrás dele e dizer-lhe ó pai espere um bocadinho
por mim. Não. Resignava-me e ficava em casa a vê-lo descer a rua. Era assim o
meu pai. Descobri mais tarde que também era um carente afectivo. O pai dele
morreu muito novo. Se calhar pegou-me. É isso, foi isso de certeza.
Hereditário, acho que é assim que se diz. O meu avô não, não tinha carências de
espécie alguma, nem de dinheiro nem de mulheres. Na fábrica onde trabalhava
eram dezenas delas. E ele mandava nelas, era o gerente. Por isso o meu avô não
podia sofrer de carências. Muito menos afectiva, tinha tanto afecto que me dava
a mim. Mas a Graça tinha razão, e eu nos meus quarenta anos sem nunca ter
descoberto nada disso. As mulheres são mesmo espertas. E agora o que eu havia
de fazer? Para além da redacção para a professora? Ir ao médico de família?
Duvido que a Dra. Cristina me soubesse tratar. Muito menos o meu dentista. O
Dr. Couto. Era muito inteligente. No consultório tinha uma quantidade enorme de
livros muito grossos. Enciclopédias, parece. Devia saber coisas incríveis. E eu
sempre achei que aquilo que ele me fazia na boca, quando eu estava sentado
naquelas cadeiras manhosas, comparado com o que ele deveria saber era nada. Uma
brincadeira. Arrancar um dente ou fazer uma limpeza devia ser canja. Coisas bem
mais difíceis deveria ele saber fazer. Tenho quase a certeza. Aquilo era muita
folha que ele de certeza já decorara, sobre coisas muito difíceis, tenho a
certeza. E eu, que para fazer uma simples redacção sobre isso de carência
afectiva, me via grego. Mas depois de sair da casa-de-banho fui descobrindo aos
poucos sinais que me indicaram que sim só podia ser um tipo carente. Às vezes
chorava no cinema. Se estava sozinho esperava que toda a gente saísse da sala
para eu depois poder sair com aquela cara de homem sério e firme ou então se
estava com as pequenas, para elas não me verem carente, e me chamarem de
menina, eu antecipava-me do FIM e dizia à São que tinha de ir à casa de banho e
pirava-me antes de toda a gente e quando fossem ter comigo já eu estava
sorridente e feliz. Já de pequenino, estou a ver agora, era carente. Isto
porque um dia a criada que me veio pôr na cama insistia para eu fechar os olhos
e dormir mas eu teimava que não e ela a insistir e eu disse-lhe que só adormecia
se me der uma coxa das suas. Era a minha chupeta para aquela noite. Ou isso ou
nada. Agora vejo, típico de um tipo carente, Pedro. Vês como a Graça tinha
razão e tu a saíres de casa dela a resmungar por isto e por aquilo só porque
ela te disse aquilo. E queres saber mais, Pedro? Outro sinal? Quando foi do teu
divórcio ficas-te completamente KO. E depois andavas aflito para arranjar uma
namorada. Se não fosses carente Pedro tinhas curtido à grande e à francesa uma
data de mulheres diferentes. Mas não, querias uma deitadinha todas as noites à
tua beira, para te contar uma história, para adormecer, fazer festinhas,
miminhos, levar-te a passear, comer contigo à mesa. Aí esta outra prova de
carência afectiva, vez? Sim, estava a ver, finalmente. Precisas de mais? Não.
Não. Sou mesmo assim. E tu achas que pelo facto de dar muitos mimos à minha
filha lhe posso estar a transmitir alguma insegurança, ela perceber que eu sou
carente, e também vir a sofrer de carência afectiva? Achas? Não sei Pedro. Não
sei Pedro.
A redacção
acabei por fazê-la. Entreguei à professora no outro dia. Tive uma nega. Foi a
única nega que tive com uma mulher…
FIM
(Sinceramente, ao reler o texto, não entendo
como é que isto saiu da minha cabeça.)
Eu gostei!
ResponderEliminarE acho que deve continuar a dar muitos mimos à sua filha ;)
Por vezes não sei se é oportuno ou não este tipo de textos mais intimistas...de qualquer modo assumo perfeitamente esta deficiência. E sim, dou talvez até demais, muitos mimos à minha filha.De certo modo funciona como aquela história de quem é que estar a dar a quem, quando se dá a esmola a um pobre, neste caso afecto.
ResponderEliminarObrigada.
Gostei muito, sobretudo da pergunto "Quem és tu Pedro?"
ResponderEliminarContinue a escrever deste seu jeito!