Ao
ler a frase de Agostinho de Hipona “O mundo é um imenso livro do qual aqueles
que nunca saem de casa lêem apenas uma página” deixa-me perplexo e receoso.
Quantas páginas desse livro terei eu lido? Eu tenho viajado pelos quatro cantos
do mundo, sim. Desde pequeno. Mas temo que afinal só tenha, até agora, lido uma
só página do Grande Livro da Vida. As minhas primeiras viagens, por ser menor
de idade, tiveram de ter a autorização dos meus pais e assim comecei pela mão
da minha mãe Alda (ou foi o meu irmão?), em terras brasileiras, com os meninos
de rua em “Capitães da Areia”. E depois fui por aí fora. Andei por África com
Ryszard Kapuscinski o Pedro Rosa Mendes e cheguei a cruzar-me com a Beatrix
Heintze ou o Corto Maltese. Mais um livro mais uma viagem. Europa com Claude
Magris, Ásia Central com Rene Grousset, América com Faulkner. Andei embarcadiço
com o Joseph Conrad, em cima dos cavalos Mongóis com Genghis Khan, nas
trincheiras na Primeira Grande Guerra e nas grandes batalhas da Segunda Grande
Guerra. E aqui estou ileso. Nem sequer fui combater para as colónias, salvo pelos
meus camaradas “capitães da Abril”. Fui depois com o Carlos Vale Ferraz e o
Jorge Ribeiro. Lá encontrei-me com o Jorge de Melo. Ah, é verdade, e também com
o Lobo Antunes. Estive uma temporada em Pitões das Júnias com o Abel Neves, no
Papeete com Stevenson, em Veneza com Jan Morrris ou Istambul com Pamuk, no
Cairo com Mahfouz, em Lisboa inúmeras vezes, só e acompanhado ora pelo Almada
ora pelo Pessoa.
E
a minha mãe:
-Pedro, larga-me esses livros e estuda!
E
os livros sempre a saltarem-me para o colo e eu a pegar neles como um viciado.
A
minha primeira Bíblia foi um livro de ensaio, “Da Guerra” de Clausewitz. Um
livro sobre guerra sem heróis. Para intelectuais, pois…O meu irmão metia-me
nestas alhadas e eu só consegui perceber o livro à terceira e em idade adulta. Vivia-se
o PREC e eu entusiasmado com tanto militar na televisão e nas ruas. Soldados,
tanques, blindados, aviões, helicópteros, generais, manobras, exercícios
militares, e viva a revolução! Depois, Maquiavel e Sun Tzu, Franz Fanon e
Gérard Chaliand. E Raymond Aron.
E
a minha mãe outra vez.
-Um dia vou trazer um livro para leres, esse
sim quero que o leias todo. “Aprenda a tomar conta de si próprio em 25 lições”!
Ouvis-te?
E
eu de livro aberto, deitado na cama, candeeiro acesso. Só escutava o tic-tac do
despertador do meu avô.
“Les
cavaliers du diable” li-o como se de um livro de aventuras do Sandokan se
tratasse. Fantásticos aqueles mongóis. Esse livro é daqueles de que me lembro bem
do lugar onde o li. No jardim de Serralves, ainda não havia Museu Contemporâneo
nem pessoas a passear nos jardins. Era um segredo bem guardado aquele pedaço de
paraíso. E estava-se ali, junto ao lago, tão bem! Só os aviões que passavam no
céu nos diziam que estávamos cercados por uma cidade, de resto só uma paisagem
de encantar. Árvores e sombra.
Ia ao quarto do meu irmão bisbilhotar os
livros e o meu pai a resmungar:
-Sempre metido em casa! Raios!
Na
tropa o que mais me chateava quando estava de sentinela duas horas num canto
qualquer do quartel era não poder ter um livro, uma revista ou um jornal para
ler. Só cigarros. Eu com uma arma na mão. Para quê se a revolução já tinha
acabado?
Hoje
sei que a minha mãe tinha razão. Aos dezoito anos peguei no “Livro do
Desassossego” e fui por ali abaixo. Mal, muito mal. Eu sei que aquilo mexeu
comigo e sei que não deveria ter lido aquilo tão cedo, sendo eu como sou. Não
me conseguia distanciar daquele modo de ser pessoano. Absorvia tudo. Foi um
desassossego para mim. Fiquei a gostar do Fernando Pessoa e elegi-o como o meu
poeta preferido. Até descobrir o Ruy Belo.
-É das melhores coisas que tenho lido, Pedro.
E
eu a concordar com o meu irmão.
Este
ano não sabia que livro haveria de escolher para as férias. Olhei para as
estantes, mentalmente consultei a lista de espera e fui logo direitinho a um
livro de capa gasta, não por mim, mas pela minha mãe. Escolhi-o por isso e por
ser de um autor que me delicia. Cinematográfico. É daqueles escritores que até
numa simples entrevista (ver livro recente da Tinta da China, “Entrevistas da
Paris Review”) é genial.
- (…) Sou, por temperamento, um vagabundo e
um nómada. Não desejo ter dinheiro de forma tão intensa que me leve a trabalhar
para o ganhar. Na minha opinião é uma vergonha trabalhar-se tanto por esse
mundo fora. (…) Isto explica porque é que o homem provoca a si mesmo e aos
outros tanto sofrimento e infelicidade”.
Como
estou só agora a aprender a ler, foi dos poucos que li duas vezes. Enquanto
estava no campismo, a meio da noite acordava acendia a lanterna e com todo
aquele silêncio mágico do campo, lia. A São ao meu lado dormia. Uma semana
bastou para acabar com o “Luz de Agosto”. Este vai ser daqueles que me vou
lembrar perfeitamente onde o li.
-“Meu Deus! Meu Deus! Como uma pessoa pode
andar tanto! Ainda não há dois meses saí de Alabama, e eis-me já em
Tennessee!”, disse a Lena Grove no final do livro. Genial. Passados uns dias,
depois de chegar de férias, tive de voltar a ler. Tinha de ser. E depois o
“Palmeiras Bravas/Rio Velho”, outras duas histórias geniais. Tem razão o Lobo
Antunes. Ninguém escreve como o Faulkner. E já fui à biblioteca ver o que lá
tem dele. Descobri “Os Invencidos” passado na Guerra Civil americana.
Pode-se
aprender muita coisa pelos livros. Direito, percursos pedestres, jardinagem, orações,
o corpo humano, o horóscopo, imensas coisas. E o que aprendi eu? Sim, já sei,
que só aprendi a ler à bem pouco tempo. E mais Pedro? Que me seria difícil
viver sem os livros. E mais? Que são uma óptima companhia. E mais? Que, quando
transportados debaixo do braço, em certos ambientes, nos tornam intelectuais. E
lembro-me do Borges, cego e sempre junto dos seus livros. O grande Jorge Luís
Borges o meu primeiro grande escritor que descobri porque lá em casa o meu
irmão e a minha mãe já o liam.
Oiço
o Sérgio Godinho:
-“…é que hoje fiz um amigo e coisa mais
preciosa no mundo não há…”
E
volta e meia lá vou ter com o meu amigo Herculano ali para os lados do
Quartel-general levar-lhe uns livros para reciclagem. Foi ele que me arranjou o
“Palmeiras Bravas/Rio Velho”, usado e preciosamente usado. Não sei quem o leu
anteriormente mas gostava de o conhecer porque gostava de saber o porquê
daqueles sublinhados, foi curioso ler um romance, ou lá o que se possa chamar àquelas
duas histórias que o Faulkner diz que é só uma, com partes sublinhadas por
outra pessoa. Foi como se estivesse a ler com essa pessoa ao meu lado. Eu sou
um bocado como o Jorge Luís Borges, não quero ter uma imensa biblioteca em casa,
de livros que nunca mais vou ler. Para quê guardá-los? Para as minhas filhas? E
quem me diz que elas vão gostar de ler? E se sim, quem me diz que vão ter as
mesmas preferências e gostar do Bohumil Hrabal, Antonin Artaud e “Os
Tarahumaras”, ou o “Le Rêve Mexicain” de Clézio, do Conrad, do delicioso e
divertido “Macunaíma” do Mário de Andrade, do Borges, do “Lenine” de Hélène C.
d’Encausse, dos policiais americanos e dos policiais do Dinis Machado, do
Almada Negreiros, ou dos clássicos Dostoiévski, Brecht, Tolstói, Tchékov, Mahfouz,
Shakespeare, Gógol, Eça de Queirós, Carlos de Oliveira, Pascoaes, Ibsen,
Pavese, Cossery, Lobo Antunes, Sophia, Ruy Belo, de que vão elas gostar de ler?
Elas hão-de decidir, um dia. Até lá arranjo sempre uns livros para levar ao meu
amigo Herculano e trocar por outros. Parece que tem lá o “Justine” e o “Saló”
do Sade. Lembro-me de tê-los lido, quando eu gastava da livraria do meu irmão,
mas gostava de os tornar a ler. Ainda há tanta coisa que gostava de ler. Porquê
esta coisa de estar sempre a ler novos livros? E é o Sade, e gostava de
experimentar o “Ulisses”, ou “A Montanha Mágica”, ou “Folhas de Erva”?
Pedantismo, vaidade? Mas, porquê ler e não reler. Consumismo? Porquê esta coisa
de ir buscar aquele livro que acabou de sair? Não o último do Lobo Antunes que
eu já não leio porque se tornam repetitivos, nem a Augustina com quem nunca me
entendi lá muito bem apesar do “Vale Abraão”, nem o último do Saramago que
desde o Nobel nunca mãos gostei de nenhum livro. Começar a ler tudo de novo,
não tudo mas alguns. Que merecem. Aliás, certos livros nunca se deveriam ler
uma só vez. Isso é garantido. É como se pudéssemos dar uma só volta no
carrossel. Por vezes desejava ficar teso, teso mesmo e não poder gastar mais dinheiro
em livros, e mesmo aquele que o Herculano me quisesse dar por aqueles que lhes
levo eu tivesse de gastar em mercearia ou na conta do infantário. E aí sim, eu
ia ficar contente em ter que reler. Era uma maneira de acabar com a minha lista
de espera (“Os Filhos da Meia-Noite”, “Guerra e Paz”, “O Idiota”, a trilogia de
Mahfouz, “Os Cadernos de Mr. Pickwick”). E o vício de entrar numa livraria?
Tinha de fazer como certos jogadores de casino que assinam uma declaração a
autorizar o casino a impedi-los de lá entrar. Chegava à Leitura ou à Latina e
entregava uma folha A4:
-Eu, Pedro fulano de tal, peço-vos, não me
deixem mais aqui entrar.
E começava
por reler o quê? Dostoievski! E eu que durante tantos anos passeava os olhos
pelos livros da estante da minha tia e lá estava o “Crime e Castigo” numa
edição dos anos setenta, e eu sem saber o que estava ali dentro. Só me
emocionei com um livro, aliás dois. “Os Irmãos Karamazov”. Um primo meu disse-me
que tinha sido aquele de que mais tinha gostado de ler até hoje. E eu confio no
Miguel, mesmo que nos últimos trinta anos só tenha estado com ele duas vezes. O
pai era outro viciado. Ouvi-o dizer aquilo e fui direito aos irmãos Karamazov.
Quando me reformar, com 400 ou 500 euros no bolso, que remédio vou ter senão em
reler, “Os irmãos Karamazov”? Porque não? Não, não precisava de trazer mais
livros para casa, mas…não sei parar, por isso eu digo que isto é um vício. Como
se fosse heroína. A minha heroína em doses de 300, 200 ou 100 páginas.
Acreditem,
os livros ainda vão dar comigo em doido. Mas até lá, vou-me injectando…até acabar
a arrumar livros na rua.
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