segunda-feira, 25 de março de 2013

Livros






Ao ler a frase de Agostinho de Hipona “O mundo é um imenso livro do qual aqueles que nunca saem de casa lêem apenas uma página” deixa-me perplexo e receoso. Quantas páginas desse livro terei eu lido? Eu tenho viajado pelos quatro cantos do mundo, sim. Desde pequeno. Mas temo que afinal só tenha, até agora, lido uma só página do Grande Livro da Vida. As minhas primeiras viagens, por ser menor de idade, tiveram de ter a autorização dos meus pais e assim comecei pela mão da minha mãe Alda (ou foi o meu irmão?), em terras brasileiras, com os meninos de rua em “Capitães da Areia”. E depois fui por aí fora. Andei por África com Ryszard Kapuscinski o Pedro Rosa Mendes e cheguei a cruzar-me com a Beatrix Heintze ou o Corto Maltese. Mais um livro mais uma viagem. Europa com Claude Magris, Ásia Central com Rene Grousset, América com Faulkner. Andei embarcadiço com o Joseph Conrad, em cima dos cavalos Mongóis com Genghis Khan, nas trincheiras na Primeira Grande Guerra e nas grandes batalhas da Segunda Grande Guerra. E aqui estou ileso. Nem sequer fui combater para as colónias, salvo pelos meus camaradas “capitães da Abril”. Fui depois com o Carlos Vale Ferraz e o Jorge Ribeiro. Lá encontrei-me com o Jorge de Melo. Ah, é verdade, e também com o Lobo Antunes. Estive uma temporada em Pitões das Júnias com o Abel Neves, no Papeete com Stevenson, em Veneza com Jan Morrris ou Istambul com Pamuk, no Cairo com Mahfouz, em Lisboa inúmeras vezes, só e acompanhado ora pelo Almada ora pelo Pessoa.


E a minha mãe:
  -Pedro, larga-me esses livros e estuda!
E os livros sempre a saltarem-me para o colo e eu a pegar neles como um viciado.
A minha primeira Bíblia foi um livro de ensaio, “Da Guerra” de Clausewitz. Um livro sobre guerra sem heróis. Para intelectuais, pois…O meu irmão metia-me nestas alhadas e eu só consegui perceber o livro à terceira e em idade adulta. Vivia-se o PREC e eu entusiasmado com tanto militar na televisão e nas ruas. Soldados, tanques, blindados, aviões, helicópteros, generais, manobras, exercícios militares, e viva a revolução! Depois, Maquiavel e Sun Tzu, Franz Fanon e Gérard Chaliand. E Raymond Aron. 
E a minha mãe outra vez.
  -Um dia vou trazer um livro para leres, esse sim quero que o leias todo. “Aprenda a tomar conta de si próprio em 25 lições”! Ouvis-te?
E eu de livro aberto, deitado na cama, candeeiro acesso. Só escutava o tic-tac do despertador do meu avô.
“Les cavaliers du diable” li-o como se de um livro de aventuras do Sandokan se tratasse. Fantásticos aqueles mongóis. Esse livro é daqueles de que me lembro bem do lugar onde o li. No jardim de Serralves, ainda não havia Museu Contemporâneo nem pessoas a passear nos jardins. Era um segredo bem guardado aquele pedaço de paraíso. E estava-se ali, junto ao lago, tão bem! Só os aviões que passavam no céu nos diziam que estávamos cercados por uma cidade, de resto só uma paisagem de encantar. Árvores e sombra.
 Ia ao quarto do meu irmão bisbilhotar os livros e o meu pai a resmungar:
  -Sempre metido em casa! Raios!
Na tropa o que mais me chateava quando estava de sentinela duas horas num canto qualquer do quartel era não poder ter um livro, uma revista ou um jornal para ler. Só cigarros. Eu com uma arma na mão. Para quê se a revolução já tinha acabado?
Hoje sei que a minha mãe tinha razão. Aos dezoito anos peguei no “Livro do Desassossego” e fui por ali abaixo. Mal, muito mal. Eu sei que aquilo mexeu comigo e sei que não deveria ter lido aquilo tão cedo, sendo eu como sou. Não me conseguia distanciar daquele modo de ser pessoano. Absorvia tudo. Foi um desassossego para mim. Fiquei a gostar do Fernando Pessoa e elegi-o como o meu poeta preferido. Até descobrir o Ruy Belo.
  -É das melhores coisas que tenho lido, Pedro.
E eu a concordar com o meu irmão.
Este ano não sabia que livro haveria de escolher para as férias. Olhei para as estantes, mentalmente consultei a lista de espera e fui logo direitinho a um livro de capa gasta, não por mim, mas pela minha mãe. Escolhi-o por isso e por ser de um autor que me delicia. Cinematográfico. É daqueles escritores que até numa simples entrevista (ver livro recente da Tinta da China, “Entrevistas da Paris Review”) é genial.
  - (…) Sou, por temperamento, um vagabundo e um nómada. Não desejo ter dinheiro de forma tão intensa que me leve a trabalhar para o ganhar. Na minha opinião é uma vergonha trabalhar-se tanto por esse mundo fora. (…) Isto explica porque é que o homem provoca a si mesmo e aos outros tanto sofrimento e infelicidade”.
Como estou só agora a aprender a ler, foi dos poucos que li duas vezes. Enquanto estava no campismo, a meio da noite acordava acendia a lanterna e com todo aquele silêncio mágico do campo, lia. A São ao meu lado dormia. Uma semana bastou para acabar com o “Luz de Agosto”. Este vai ser daqueles que me vou lembrar perfeitamente onde o li.
  -“Meu Deus! Meu Deus! Como uma pessoa pode andar tanto! Ainda não há dois meses saí de Alabama, e eis-me já em Tennessee!”, disse a Lena Grove no final do livro. Genial. Passados uns dias, depois de chegar de férias, tive de voltar a ler. Tinha de ser. E depois o “Palmeiras Bravas/Rio Velho”, outras duas histórias geniais. Tem razão o Lobo Antunes. Ninguém escreve como o Faulkner. E já fui à biblioteca ver o que lá tem dele. Descobri “Os Invencidos” passado na Guerra Civil americana.
Pode-se aprender muita coisa pelos livros. Direito, percursos pedestres, jardinagem, orações, o corpo humano, o horóscopo, imensas coisas. E o que aprendi eu? Sim, já sei, que só aprendi a ler à bem pouco tempo. E mais Pedro? Que me seria difícil viver sem os livros. E mais? Que são uma óptima companhia. E mais? Que, quando transportados debaixo do braço, em certos ambientes, nos tornam intelectuais. E lembro-me do Borges, cego e sempre junto dos seus livros. O grande Jorge Luís Borges o meu primeiro grande escritor que descobri porque lá em casa o meu irmão e a minha mãe já o liam.
Oiço o Sérgio Godinho:
  -“…é que hoje fiz um amigo e coisa mais preciosa no mundo não há…”
E volta e meia lá vou ter com o meu amigo Herculano ali para os lados do Quartel-general levar-lhe uns livros para reciclagem. Foi ele que me arranjou o “Palmeiras Bravas/Rio Velho”, usado e preciosamente usado. Não sei quem o leu anteriormente mas gostava de o conhecer porque gostava de saber o porquê daqueles sublinhados, foi curioso ler um romance, ou lá o que se possa chamar àquelas duas histórias que o Faulkner diz que é só uma, com partes sublinhadas por outra pessoa. Foi como se estivesse a ler com essa pessoa ao meu lado. Eu sou um bocado como o Jorge Luís Borges, não quero ter uma imensa biblioteca em casa, de livros que nunca mais vou ler. Para quê guardá-los? Para as minhas filhas? E quem me diz que elas vão gostar de ler? E se sim, quem me diz que vão ter as mesmas preferências e gostar do Bohumil Hrabal, Antonin Artaud e “Os Tarahumaras”, ou o “Le Rêve Mexicain” de Clézio, do Conrad, do delicioso e divertido “Macunaíma” do Mário de Andrade, do Borges, do “Lenine” de Hélène C. d’Encausse, dos policiais americanos e dos policiais do Dinis Machado, do Almada Negreiros, ou dos clássicos Dostoiévski, Brecht, Tolstói, Tchékov, Mahfouz, Shakespeare, Gógol, Eça de Queirós, Carlos de Oliveira, Pascoaes, Ibsen, Pavese, Cossery, Lobo Antunes, Sophia, Ruy Belo, de que vão elas gostar de ler? Elas hão-de decidir, um dia. Até lá arranjo sempre uns livros para levar ao meu amigo Herculano e trocar por outros. Parece que tem lá o “Justine” e o “Saló” do Sade. Lembro-me de tê-los lido, quando eu gastava da livraria do meu irmão, mas gostava de os tornar a ler. Ainda há tanta coisa que gostava de ler. Porquê esta coisa de estar sempre a ler novos livros? E é o Sade, e gostava de experimentar o “Ulisses”, ou “A Montanha Mágica”, ou “Folhas de Erva”? Pedantismo, vaidade? Mas, porquê ler e não reler. Consumismo? Porquê esta coisa de ir buscar aquele livro que acabou de sair? Não o último do Lobo Antunes que eu já não leio porque se tornam repetitivos, nem a Augustina com quem nunca me entendi lá muito bem apesar do “Vale Abraão”, nem o último do Saramago que desde o Nobel nunca mãos gostei de nenhum livro. Começar a ler tudo de novo, não tudo mas alguns. Que merecem. Aliás, certos livros nunca se deveriam ler uma só vez. Isso é garantido. É como se pudéssemos dar uma só volta no carrossel. Por vezes desejava ficar teso, teso mesmo e não poder gastar mais dinheiro em livros, e mesmo aquele que o Herculano me quisesse dar por aqueles que lhes levo eu tivesse de gastar em mercearia ou na conta do infantário. E aí sim, eu ia ficar contente em ter que reler. Era uma maneira de acabar com a minha lista de espera (“Os Filhos da Meia-Noite”, “Guerra e Paz”, “O Idiota”, a trilogia de Mahfouz, “Os Cadernos de Mr. Pickwick”). E o vício de entrar numa livraria? Tinha de fazer como certos jogadores de casino que assinam uma declaração a autorizar o casino a impedi-los de lá entrar. Chegava à Leitura ou à Latina e entregava uma folha A4:
  -Eu, Pedro fulano de tal, peço-vos, não me deixem mais aqui entrar.
E começava por reler o quê? Dostoievski! E eu que durante tantos anos passeava os olhos pelos livros da estante da minha tia e lá estava o “Crime e Castigo” numa edição dos anos setenta, e eu sem saber o que estava ali dentro. Só me emocionei com um livro, aliás dois. “Os Irmãos Karamazov”. Um primo meu disse-me que tinha sido aquele de que mais tinha gostado de ler até hoje. E eu confio no Miguel, mesmo que nos últimos trinta anos só tenha estado com ele duas vezes. O pai era outro viciado. Ouvi-o dizer aquilo e fui direito aos irmãos Karamazov. Quando me reformar, com 400 ou 500 euros no bolso, que remédio vou ter senão em reler, “Os irmãos Karamazov”? Porque não? Não, não precisava de trazer mais livros para casa, mas…não sei parar, por isso eu digo que isto é um vício. Como se fosse heroína. A minha heroína em doses de 300, 200 ou 100 páginas.
Acreditem, os livros ainda vão dar comigo em doido. Mas até lá, vou-me injectando…até acabar a arrumar livros na rua.

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