domingo, 3 de março de 2013

A limitação dos mandatos

O artigo 1º da Lei 46/2005 dispõe que «o presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos». Esta lei, recorde-se, foi exibida na praça pública como uma das mais corajosas e promissoras reformas estruturais do nosso viciado e corrupto sistema político, na medida que iria permitir a renovação e arejamento da classe política. A lei, com praticamente um único artigo (o outro diz respeito apenas à entrada em vigor), foi aprovada em 2005 para produzir efeitos apenas em 2013. Freitas do Amaral, Cavaco Silva, Jorge Sampaio, Marcelo Rebelo de Sousa e toda essa plêiade de juristas que se alimenta e gravita em torno do poder, dispuseram, assim, de oito longos anos para ler e reler este único artigo.

Foi preciso chegar-se à data da produção dos efeitos da lei, que irá inevitavelmente afectar os compagnons de route dos donos do nosso sistema político, para que as águas do pântano se começassem a agitar com vista a fazer desaparecer a única reforma verdadeiramente estrutural do nosso sistema político dos últimos trinta anos.

Recordo que, na altura, também se defendeu que a limitação de mandatos deveria ser extensível aos deputados pelo que o artigo 1º da referida Lei poderia bem ter a seguinte redacção: «Os deputados, o presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos». Acham que esta lei poderia ser interpretada no sentido de um deputado, após ter cumprido três mandatos sucessivos, se poder voltar a candidatar desde que o fizesse por outro círculo eleitoral?


Que todos aqueles que se revêem nas democracias populistas sul-americanas do tipo Hugo Chávez sejam, pura e simplesmente, contra qualquer limitação de mandatos, com o argumento de que, numa democracia, o único que conta é a vontade popular, eu compreendo. Aliás, são coerentes com os regimes que defendem.

O que eu não compreendo é que partidos, como o PSD, que defendem as democracias liberais (as democracias características da Europa e da América do Norte), utilizem esse tipo de argumentos. Com efeito, os defensores das democracias liberais sabem que a democracia não se constrói apenas através de eleições, mas também de um conjunto de valores fundamentais e de regras, algumas das quais com efeitos restritivos das vontades das maiorias, com vista designadamente a impedir o esmagamento das minorias e a eternização dos mesmos indivíduos no poder através da criação de redes clientelares que garantem o controlo do colégio eleitoral.

Como dizia Lord Acton, «todo o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente». E é, aliás, muito mau sinal quem não tiver a consciência disto. E, como estamos fartos de constatar, os presidentes de câmara, tal como os deputados e governantes, são como os frutos: se ficarem muito tempo na árvore acabam por apodrecer. É, por isso, higiénico substituí-los, antes que apodreçam. É, de resto, pedir muito à natureza humana exigir a um indivíduo que administre prudentemente o bem público, se se lher der a possibilidade de usar, indiscriminadamente, os recursos públicos para garantir as suas reeleições sucessivas. Basta olhar para o estado de fartar vilanagem a que chegou o país, desde o endividamento público, corrupção, compadrio até às obras inúteis, faraónicas e megalómanas, subsídios, almoços, jantares e foguetório, etc, etc. E qual o único objectivo de tudo isto? Garantir o voto do povo que, como se viu agora em Itália, prefere votar em palhaços e demagogos do que em gente séria e competente.

No entanto, se se vier a entender, como defende o PSD, que a actual lei da limitação dos mandatos permite a um presidente da câmara concorrer a outro município, isso significa que a emenda ainda é pior do que o soneto. Com efeito, este entendimento tornaria o sistema ainda mais corrupto porque transformaria os presidentes das câmaras, que hoje têm legitimidade e autonomia própria por força do voto popular, em peões de redes clientelares e partidárias supramunicipais que estas iriam rodando dentro da sua área de influência e consoante as suas conveniências. Além disso, permitiria que um presidente da câmara iniciasse a sua candidatura ao município vizinho, sem ter ainda terminado o seu mandato no município que o elegeu, usando, para o efeito, recursos deste município.

Como diz o povo, “p’ra melhor, está bem, está bem! P’ra pior já basta assim!” Mas isto só vem demonstrar o que eu já constatei há muito: em Portugal, as reformas estruturais apenas visam acentuar e aperfeiçoar os vícios já existentes e nunca corrigi-los.
 
Santana-Maia Leonardo

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