PODE
NASCER UMA FLOR
Ainda o avô
era vivo, o avô Chicote, dera-se uma cheia no Tejo, daquelas que parecem
capazes de cobrir a terra. Tocadas pelo vento, as águas submergiam malagueiros,
mouchões e lezírias, danadas de todo, e se não fora um rancho de gaibéus, que
estava na margem norte e se meteu ao temporal, todo o gado e o trigo de um
celeiro atestado teriam ido com a cheia para o mar.
Depois de
fazerem aquele trabalho, sem ninguém lho encomendar, os homens disseram que
nada queriam receber. Só pediam, fora o avô das Moitinhas, o único capaz de ir
à fala com o lavrador, que este lhes arrendasse as terras da Charneca. – Pra
que querem vocês aquela pedra esfarelada? – Pra viver nela. – Mas fazerem o
quê? - Trabalhar… - Aquilo não dá um
bago de nada. - No suor de um homem pode
nascer uma flor, saiba o patrão – respodera o Moitinha, todo rompantes.
O Chicote
gostara da prontidão da réplica e anuíra. A cortiça era para ele, mexessem na
terra, mas nada de prejudicarem os sobreiros, e fossem lá à vida. – E quanto é
a renda ao ano? – Nada. Não dou terras de renda. Terra minha faço-a eu.
Empresto-a. – E por quanto tempo, lavrador? – Enquanto vocês e os netos
quiserem. Só não quero é zaragatas por lá. À primeira coisa que houver e que me
chegue aos ouvidos, ponho tudo na estrada. – Está falado! – Dissera o Moitinha.
– E quando pode ser? – Hoje mesmo, se vocês quiserem…
E lá se
tinham aguentado naquele deserto, ia para cima de trinta anos. Ninguém hoje
seria capaz de dizer o que aquilo fora. Buscaram água e encontraram-na;
quiseram terra e fizeram-na no suor de cada um. E não lhes faltavam manchas de
vinha, canteiros de horta, leivas de trigo e árvores de fruto. O avô
esquecera-se deles. Um dia o Moitinha apareceu no palácio. Era um mendigo.
Teimou em falar com o lavrador, fez barulho e zangou-se. Dizia ele que achara
um punhado de oiro na Charneca e vinha dá-lo ao dono. Só assim o feitor se
convenceu.
À primeira
vista o avô não o reconhecera. – Quem és tu? – Sou aquele homem que pediu ao
lavrador para fazer a Charneca; naquele dia da cheia… - E depois? – E depois cá
lhe trago este pão (e tirou um pão de quilo de dentro do saco), o primeiro que
a terra deu à gente este ano… - Que comeram vocês neste entretempo? – Fé e
fome, lavrador. Lembra-se do que eu lhe disse? – Não me lembro bem. – Disse-lhe
que no suor do homem pode nascer uma flor. Cá lha trago. Está tudo lá em cima
na Charneca, às espera que eu volte para começar a comê-lo. Gostava que o
patrão lhe desse uma dentada…
NOTA – Texto
de Alves Redol – “Barranco de Cegos”
Transcrito
por Amândio G. Martins
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