sexta-feira, 6 de novembro de 2015

GRANDES AUTORES

                                      PODE NASCER UMA FLOR

Ainda o avô era vivo, o avô Chicote, dera-se uma cheia no Tejo, daquelas que parecem capazes de cobrir a terra. Tocadas pelo vento, as águas submergiam malagueiros, mouchões e lezírias, danadas de todo, e se não fora um rancho de gaibéus, que estava na margem norte e se meteu ao temporal, todo o gado e o trigo de um celeiro atestado teriam ido com a cheia para o mar.
Depois de fazerem aquele trabalho, sem ninguém lho encomendar, os homens disseram que nada queriam receber. Só pediam, fora o avô das Moitinhas, o único capaz de ir à fala com o lavrador, que este lhes arrendasse as terras da Charneca. – Pra que querem vocês aquela pedra esfarelada? – Pra viver nela. – Mas fazerem o quê? -  Trabalhar… - Aquilo não dá um bago de nada. -  No suor de um homem pode nascer uma flor, saiba o patrão – respodera o Moitinha, todo rompantes.
O Chicote gostara da prontidão da réplica e anuíra. A cortiça era para ele, mexessem na terra, mas nada de prejudicarem os sobreiros, e fossem lá à vida. – E quanto é a renda ao ano? – Nada. Não dou terras de renda. Terra minha faço-a eu. Empresto-a. – E por quanto tempo, lavrador? – Enquanto vocês e os netos quiserem. Só não quero é zaragatas por lá. À primeira coisa que houver e que me chegue aos ouvidos, ponho tudo na estrada. – Está falado! – Dissera o Moitinha. – E quando pode ser? – Hoje mesmo, se vocês quiserem…
E lá se tinham aguentado naquele deserto, ia para cima de trinta anos. Ninguém hoje seria capaz de dizer o que aquilo fora. Buscaram água e encontraram-na; quiseram terra e fizeram-na no suor de cada um. E não lhes faltavam manchas de vinha, canteiros de horta, leivas de trigo e árvores de fruto. O avô esquecera-se deles. Um dia o Moitinha apareceu no palácio. Era um mendigo. Teimou em falar com o lavrador, fez barulho e zangou-se. Dizia ele que achara um punhado de oiro na Charneca e vinha dá-lo ao dono. Só assim o feitor se convenceu.
À primeira vista o avô não o reconhecera. – Quem és tu? – Sou aquele homem que pediu ao lavrador para fazer a Charneca; naquele dia da cheia… - E depois? – E depois cá lhe trago este pão (e tirou um pão de quilo de dentro do saco), o primeiro que a terra deu à gente este ano… - Que comeram vocês neste entretempo? – Fé e fome, lavrador. Lembra-se do que eu lhe disse? – Não me lembro bem. – Disse-lhe que no suor do homem pode nascer uma flor. Cá lha trago. Está tudo lá em cima na Charneca, às espera que eu volte para começar a comê-lo. Gostava que o patrão lhe desse uma dentada…

NOTA – Texto de Alves Redol – “Barranco de Cegos”
Transcrito por Amândio G. Martins


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