terça-feira, 10 de novembro de 2015

POESIA

POEMA DO ALEGRE DESESPERO
Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
Ninguém se lembre de um certo Fernão Barbudo
Que plantava couves em Oliveira do Hospital,

Ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
Que tirou um retrato toda vestida de veludo
Sentada num canapé junto de um vaso com flores.
Compreende-se.
E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(O Alto Império, o Médio Império  e o Baixo Império)
Com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
E o Estrabão, e o Artaxerxes, e o Xenofonte, e o Heráclito,
E o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
E os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
Que conquistavam o Lácio e perdiam o Epiro, e conquistavam o Epiro e perdiam o Lácio,
E passavam a vida inteira a fazer guerras,
E quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
E o resto tudo por aí fora,
E a guerra dos Cem Anos,
E a Invencível Armada,
E as campanhas de Napoleão,
E a bomba de hidrogénio,
E os poemas de António Gedeão.
Compreende-se.
Mais império menos império,
Mais faraó menos faraó,
Será tudo um vastíssimo cemitério,
Cacos, cinzas e pó.
Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.
E o nosso sofrimento para que serviu afinal?

NOTA – Poema de António Gedeão – “Linhas de Força”,
Transcrito por Amândio G. Martins


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