domingo, 14 de junho de 2015

AS FESTAS DE LISBOA

Ilustração Paulo Robalo





Esta cidade tem um santo a meias. Melhor metade que nenhum - é meio abençoada - o que não está nada mal dada a carência de protecções divinas.
Os académicos e canónicos disputam a naturalidade do santo, afogando-se em investigações e escrita de teses, gastam uma vida isto. “Nasceu aqui”, ”É mais dali do que daqui”, “Não é italiano”, ”Ai isso é que é!”, o que transforma a questão num grande enjoo e tédio. Não sabem eles que os santos não reivindicam certidões de nascimento, e estão no mundo para serem do mundo, distanciados de clubismos geográficos.
O nosso meio santo - reza a lenda acabada de inventar - gostava da folia e não resistia a um belo bailarico, apesar da sotaina dificultar a soltura de movimentos. Era igualmente dado aos prazeres da comida e do refrigério, tinha portanto uma barriga generosamente saliente, sinal de bonomia. Como a Regra o impedia – e ele era dos mais cumpridores – de se ligar em matrimónios, fez-se mestre de diligências, juntando as caras metades, e abençoando uniões, que é para isso que cá andamos, para nos unirmos com bênçãos.
Com uma descrição feita desta maneira, já se vê que ele tanto pode ser nosso como dos italianos, que em se falando de pés de dança, petiscos, e folia este povo e o outro têm gostos idênticos.
A diferença calha em que cá o comemoramos com muito mais categoria e protagonismo, o que lhe retira a metade de ser dos outros que não o consideram devidamente, transitando a pertença de parte inteira para a cidade de Lisboa.
Em honra do nosso querido santo António – a quem dedicamos todos os 13 de Junho, como feriado irrevogável - o povo nos seus orgulhos de bairro, nas picardias das tradições que reclamam mais genuínas que as dos bairros rivais, aperalta os seus, e numa coreografia de gente simples, que ensaiou nas colectividades recreativas ao longo do ano, desfila no marchódromo – nome que damos à nossa réplica de sambódromo - na grande avenida, que é a descer e ajuda à marcha.
Nesta noite glamorosa, as grandes boutiques mesmo que incomodativa e constantemente iluminadas, não vão receber olhares angolanos, ou russos ou chineses. Os olhares, todos, estão virados para a grande passarela da cidade.
Há lá montra mais bonita que os balões, as luminárias, o desfilar orgulhoso das cantilenas com rimas simples, e sentimentais, das moças e dos moços, com a alegria e o orgulho estampados nas caras?
Entretanto, nas ruelas e becos antigos, a gente passeia-se, à cata da sardinha no pão, assada no fogareiro da Ti Maria - ela ainda com resquícios de pilosidades na barbela - e o Ti Manel, camisola de alças - que faz calor - a abanar e a virar o peixe dos pobres, agora inflacionado, que nesta noite se compõe o orçamento da reforma.
Os turistas que são pessoas que não veem para além da objectiva de uma máquina de tirar fotografias, rejubilam com a sorte que tiveram na escolha deste destino, enfrascam-se rapidamente porque não têm a filosofia do beber que nós temos, gastam os euros que lhes são baratos, e hão-de voltar para casa sem terem percebido nada.
O que pouco importa, já que esta festa não é para eles, é a nossa festa.
Damo-nos por muito felizes por a Tia Maria e o Senhor Manuel ainda assarem o peixinho e venderem copos de sangria. Chegará talvez o dia em que a necessidade de compor os orçamentos do estado com as receitas dos visitantes massificados, obrigue a servir a boa da sardinha em contentores assépticos e certificados, com o genro pintas do Ti Manel a passar factura com número de contribuinte, sentado no degrau da porta de casa em Alfama ou na Mouraria.
Até lá, viva o nosso nado e criado e querido santo António, o patrocinador da melhor festa do ano, e vamos mas é para a rua, que a noite se põe calorosa, e não há nada mais lindo que esta cidade, quando manda a melancolia as ortigas, e se põe a cheirar o manjerico.
Depois da ressaca, fazemos a mala e vamos para o Porto, que eles também têm um santo dos bons e dos nossos (digo eu), e a festa é rija. É neste mês que pomos todos os santos em dia, religiosos que somos.



3 comentários:

  1. Juntar à família padroeira o mártir São Vicente, pois este até talvez venha muito a propósito, dado que o povo está a ser martirizado. Quanto ao Fernando de Bulhões, o Santo António, famoso pelos seus sermões também deve continuar a ser festejado, porque somos também um povo com muita garganta. Conquanto, a cidade de Pádua, festeja com muito vigor o Santo António, cujos restos mortais estão sepultados na igreja que lhe é dedicada, a qual já tive o gosto de visitar. Como estamos na Europa, para evitar conflitos, vamos considerar o santo como europeu.

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  2. Vamos concerteza considerá-lo europeu! Quanto aos festejos de Pádua, estamos absolutamente solidários com eles. Do nosso mártir, essa é realmente uma história que os lisboetas deviam conhecer, e tratar devidamente.
    Este meu texto, foi uma brincadeira obviamente ficcionada sem mais intenção que brincar ao Santo António.

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  3. Com o espírito que anima os seus escritos, eu entendo que, mesmo tratando de assuntos com alguma profundidade, o Luís envolve, sempre na sua construção, uma tempera de graça. É um estilo saudável, que gosto e admiro.

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