O
SOARES E O PEREIRA
O Soares e o
Pereira, empregados do mesmo escritório, eram inimigos de alma. Não havia questão
de serviço - ainda que rigorosamente não pudesse surgir conflito entre os dois
- em que não surgisse conflito entre os
dois. E, embora nunca seguissem por aquelas vias chamadas de facto, fervia em
pouco tempo a descompostura mútua. De besta para cima e para baixo, todos os
arredores de malandro, com passagem por gatuno e grande escala por tudo, encontrarem-se
era discordarem, olharem-se era a primeira palavra de se descomporem.
Um dia o
Soares, que era o mais inteligente e por isso o mais estúpido dos dois,
referindo, fora do escritório, a um amigo as cenas habituais com o Pereira,
recebeu desse a pergunta: “Mas porque diabo é que tu não o esmagas com uma
coisa pior que todas as piadas?” “Que coisa?”, perguntou o Soares;
“porrada?”.”Não, não digo isso… Melhor que isso; o silêncio…Ele tem mais piada
que tu; pois bem, arranja mais desprezo do que ele. Ele insulta, e tu olhas
para ele e não dizes nada. Ele insulta mais, e tu na mesma. Ele espuma e
esbraveja, e tu idem e igualmente zero. Verás que não há piada que ele possa
dizer que valha o que tu não dizes. O que tu não dizes pode ser tudo; o que ele
diz não pode ser senão o que ele diz, e, se calhar, muitas vezes nem isso é.”
O Soares
pensou e achou razão, pelo menos provisória, ao conselho. E, ao contrário do
que a prudência manda, seguiu-o. Mas, como é costume suceder quando se não
segue a prudência, fez bem.
Foi logo no
dia seguinte, porque era todos os dias, e o dia seguinte não era feriado.
Surgiu um incidente que o Pereira fez o Soares ter feito surgir. E, sob os
ouvidos fitantes do outro pessoal, o Pereira começou. Os substantivos do
costume uniram-se aos adjectivos da vizinhança, e o caracter, habilitações,
possibilidades penais, e outros atributos de um Soares de retórica, fulguraram
no discurso. A certa altura, como o Soares não dissesse nada, mas olhasse para o orador com uma atenção
despreocupada e vaga, o Pereira começou a afrouxar. Seguiu a cena, de calado a
pasmo, e o Pereira, afrouxando cada vez mais, foi-se tornando lívido. Ao fim de
cinco minutos estava quase mudo e com a voz e a expressão do olhar em vésperas
de lágrimas. Então engoliu um pouco; e, dirigindo-se ao Soares numa voz
trémula, disse: Ó Soares, você está zangado comigo?”
NOTA – Conto
de Fernando Pessoa
Transcrito
por Amândio G. Martins
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