As câmaras municipais são a célula cancerígena do nosso
sistema político. Se não conseguirmos perceber isto, nunca conseguiremos, com
sucesso, alterar o nosso modelo de desenvolvimento, reformar as mentalidades, o
nosso sistema político e a nossa administração pública, combater a corrupção e o
compadrio e tornarmo-nos num verdadeiro Estado de direito. O poder autárquico é
a base da pirâmide que sustenta toda a estrutura do poder político partidário e
o modelo macrocéfalo de desenvolvimento do País.
À excepção de Lisboa, Porto e pouco mais, a esmagadora
maioria dos municípios têm tamanho paroquial, o que leva necessariamente ao caciquismo.
O senhor presidente da câmara paira sobre todas as actividades do município,
por mais insignificativas que sejam. E, à semelhança do senhor prior que leva a
bênção a casa dos seus paroquiantes, o senhor presidente leva o chequezinho a
casa dos fiéis, para a obra, o almoço da colectividade, a viagem ao estrangeiro,
o concurso de pesca ou o campeonato de sueca. Não há nada que aconteça na
paróquia que dispense a sua presença e aqueles que não ajoelham à sua passagem são
olhados como hereges e literalmente perseguidos.
Acresce que os municípios reproduzem, em ponto pequeno, o
modelo macrocéfalo de desenvolvimento do País, onde a capital (sede do
concelho) impera e esvazia todo o território. Por outro lado, a competição
desenfreada entre municípios vizinhos, para além de levar as câmaras a consumir
recursos em excesso (há cada vez mais localidades com equipamentos de luxo sem
gente sequer para os utilizar), leva inevitavelmente a que os municípios
maiores acabem por engolir os mais pequenos, levando à desertificação do
território, num processo irreversível de concentração de população na região de
Lisboa e na faixa litoral circundante. Não há modelo que melhor sirva o poder
de Lisboa do que a divisão do território em pequenos municípios liderados por
tiranetes que se digladiam entre si para conseguir ganhar um lugar à mesa do
Orçamento de Estado.
E quem olhar para um orçamento de uma autarquia não pode
deixar de se arrepiar pela forma como é gasto o nosso dinheiro. Se se reduzisse
os executivos autárquicos a um por distrito, Portugal só tinha a ganhar, sem
que isso implicasse desmembrar ou reduzir o número de municípios. Bastava que
os “presidentes de câmara” passassem a ser cargos de direcção da administração
pública não electivos e os “governadores-civis” passassem a ser eleitos, assim
como a assembleia distrital.
Em primeiro lugar, as terras ficariam com os serviços municipais
libertos da tutela do ditador. Ou seja, a câmara municipal passaria a estar
organizada para servir os munícipes, com isenção e imparcialidade, em vez de se
destinar a colocar os afilhados do senhor presidente.
Em segundo lugar, poupar-se-ia mais de metade do orçamento
das câmaras que é gasto, literalmente, a sustentar o poder político e a
garantir a sua reeleição, ou seja, a alimentar os do partido, os afilhados e a
chusma de associações, fundações, institutos e organizações por onde eles se
reproduzem e que são sustentadas por dinheiro público.
Em terceiro lugar, a sociedade civil podia respirar
livremente, sem ter de andar sempre a esbarrar no senhor presidente, o que a
obrigaria a ter vida própria, deixando de depender dos subsidiozinhos e dos
favores do senhor presidente.
Em quarto lugar, a dimensão distrital e o maior distanciamento
em relação ao senhor presidente, faria não só que a qualidade dos candidatos
aumentasse como também que os munícipes passassem a preferir, naturalmente,
eleger um presidente competente e sério. Com efeito, quando os municípios têm o
tamanho paroquial, as pessoas escolhem é o amigalhaço que lhes garanta o
emprego dos filhos e os desenrasque, levando a que o Estado de direito seja
diariamente violado, sob pena de o senhor presidente perder os amigos e os
votos. O mesmo sucederia, aliás, se o juiz da comarca ou o comandante do posto
da GNR fossem eleitos.
Em quinto lugar, um executivo distrital permitia: um melhor
aproveitamento dos recursos e um melhor planeamento; dar peso, unidade,
diversidade e voz ao distrito; descentralizar, ocupar uniformemente o
território nacional, colocar todos os distritos em pé de igualdade e combater a
desertificação do território.
Em sexto lugar, as tensões que se estabeleceriam
necessariamente entre as cidades do distrito faria com que fosse necessário
estabelecer pontes não só entre as diferentes cidades como entre os diferentes
partidos, o que seria benéfico para a qualidade da democracia e do estado de
direito, a liberdade de expressão e de opinião e a distribuição de poderes dentro
distrito, impedindo a concentração hegemónica de poderes numa cidade ou numa
pessoa. Um dos nossos grandes problemas é precisamente o excesso de individualismo
e a nossa incapacidade de nos associarmos num objectivo comum. Nos nossos
pequenos municípios, o partido que manda na câmara manda em tudo. Enquanto se o
executivo fosse distrital, os interesses, por exemplo, do PS de Santarém seriam
conflituantes com os do PS de Torres Novas, de Tomar e de Abrantes. E isso
seria benéfico porque obrigaria a criar pesos e contra-pesos e ajudaria a criar
uma cultura de compromisso que é precisamente o que nos falta.
Santana-Maia Leonardo - Público de 4/11-2013
A raiz deste desconchavo, a que chegou a política administrativa do país, está na mentalidade dos que chegam ao poder, mesmo que seja numa pequena jurisdição e com muita limitação legal, que os transforma em ditadorzinhos. É uma questão de cultura e não há volta a dar com a estrutura implementada no país. Os pequenos tiranos, ao tornarem-se profissionais da política, agarram os lugares porque são a sua forma de sobrevivência. Como os Partidos é que os nomeiam para as listas, tornam-se emissários das cúpulas partidárias e ficam ao serviço destas e não das populações, na maioria, abúlicas. Como dizia o general romano, só mudando o povo, porque o clima é apetecível.
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