Saber viver é coisa séria...
“Lembro-me perfeitamente da morte de três homens. O primeiro
era o homem mais rico do seu século. O caminho para a fortuna abrira-o ele
espezinhando as almas e os corpos, mas passara numerosos anos tentando resgatar
o amor que traíra. Prestara, assim, enormes serviços à humanidade e talvez
tivesse feito pender a balança para o bom lado. Eu andava no mar quando ele
morreu e a notícia foi inserida no boletim de bordo.Quase toda a gente a
recebeu com prazer e numerosos foram os que disseram: “Graças a Deus, aquele
filho da mãe já morreu”.
O segundo, esperto como o diabo, ignorava a dignidade humana
e conhecia bem de mais as fraquezas e as perversidades do homem, utilizando-se
de toda a sua ciência para perverter, comprar, corromper, ameaçar e seduzir,
até que alcançou o poder, dissimulando os verdadeiros objectivos sob a capa da
virtude. Perguntei a mim mesmo se ele saberia que não há presente que consiga
comprar o amor dum homem cujo amor-próprio foi ferido. O corrompido só pode
odiar o seu corruptor. Quando este homem morreu, toda a nação lhe fez o elogio
mas, ao mesmo tempo, suspirou de alívio.
O terceiro talvez tenha praticado numerosos erros, mas votou
toda a vida ao serviço do homem, a transmitir-lhe coragem, dignidade e bondade,
numa época em que o homem tinha medo e em que as forças do mal se tinham
desencadeado no mundo para explorar os terrores do homem. Quando morreu, o povo
chorou nas ruas e soltou este grito: “Que iremos fazer gora? Como poderemos
viver sem ele”?
No meio de tanta incerteza há uma coisa de que tenho a
certeza: sob as mais espessas camadas da sua fragilidade, os homens desejam ser
bons e querem ser amados. Se enveredam pelo vício é porque julgaram ter tomado
por um atalho que os levaria ao amor. Quando um homem chega às portas da morte,
pouco importa o seu talento, o seu poder ou o seu génio. Se morrer odiado, a
sua vida foi um malogro e a morte um gélido horror. Creio que, se qualquer de
nós tiver de escolher entre dois caminhos, de pensamento ou acção, o deverá
fazer sempre tendo a morte em vista e procurando viver de forma a que essa
mesma morte não possa constituír um prazer para ninguém”.
Nota – Apontamento do livro anexo.
Amândio G. Martins
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