terça-feira, 23 de dezembro de 2014

HISTÓRIA PARA O NATAL



Estava todo farruscas. O cão assustou-se claro – os pelos ficaram híspidos – e ladroou sem pedir autorização aos pulmões.
- Sou eu farrusco – disse o ti Manel.
O bicho reconheceu a voz do dono e acalmou o pranto. Quanto aos preparos em que este se apresentava não chegaria lá sem explicações mais convincentes. E ele era um canídeo inteligente.
O estouvado do pastor – dera-lhe para ali – cobria-se com uma saca de serapilheira a fazer de casaca, cravejada a castanhas e nozes, com apontamentos de folhas vermelhas. Enfiada na cabeça, uma carapuça da mesma cor.
Cada vez que ele meneava a cabeça, com um guizo a fazer de berloque no carapuço - a dar e dar - a barba, já de si branca, soltava uma espécie de poeira nívea.
O sacana (cogitações do cão) tinha a cara e as mãos chamuscadas de preto. Preto?
- Farrusco, estou de Pai Natal.
O cão, que era o único indivíduo naquela casa que não se chegava ao bagaço, compreendeu o personagem que o dono estava a encarnar. Agora em preto, nunca tinha visto!
Como viviam num sítio ermo era possível que estivesse desactualizado, e guardou essa estranheza só para si.
- Hoje é a noite mais bonita do ano.
- E vamos comemorar como manda a tradição: em família.
O cão que apesar de ter nascido na condição de cão, tinha o seu tino próprio, ficou com dúvidas relativamente aquela afirmação.
A família eram os dois, não vislumbrava portanto motivos mais fortes para que a noite fosse diferente de todas as outras que o ano desfia, já que a companhia era sempre a mesma.
- É uma noite especial, em que a paz e a harmonia baixa ao mundo, a noite do verdadeiro amor - o velho parecia uma filósofo.
A rotina desse dia foi a receita habitual: madrugar, pastar o rebanho e os sonhos, e voltar para casa para a companhia do braseiro.
Foi tudo igual mas era possível que o dono, para estar com esta conversa, tivesse abusado na dose do costume. Ou então, outros sentimentos que desconhecia por ser um animal quase irracional,causavam aquela febre.
- Convidei o Zé da mula, que também está casado com a solidão, para a janta. Este ano vai ser uma alegria nesta casa.
Agora que olhava melhor, o farrusco viu a casa diferente. Na lareira - um de cada lado - pendurados dois peúgos velhos, com buracos e tudo. A mesa estava posta – com garfos e tudo - e um coto de vela enfiado no gargalo de uma garrafa bojuda e verde, a fazer de marco geodésico.
O Zé da mula vivia do outro lado da serra – mais de uma hora em bom andar – e era um homem - como todos os solitários - contido nos discursos: não lhes uso no dia a dia. Quanto a tudo o resto o Zé era igual a todos os habitantes daqueles lugares: resistente e sorumbático.
Caído o pano da noite, veio acompanhado da dita. O farrusco foi fazendo as honras da casa, rodeando e cheirando insistentemente a híbrida, pondo-se a jeito aos humores instáveis da mula que era um ser de carácter retorcido. Teve sorte porque ela também estava imbuída no espirito da data, e não lhe passou “cartão”.
Ao Zé que via as coisas com uma espécie de nevoeiro permanente em frente dos olhos, pelo que não era esquisito nas apreciações, não lhe passou desapercebida a diferença e não deixou de comentar a indumentária excêntrica do amigo:
- O Manel pareces o Baltazar, o rei mago.
- O Baltazar? Porque dizes isso?
- Porque estás disfarçado de preto.
- Então não sou o Pai Natal?
- E porque é que havias de ser o Pai Natal se estás pintado de preto?
- Não era a cor dele?
- Não, essa era a cor do tal do Baltazar. E o Pai Natal não tem nada a ver com essa história, é um gajo do Norte, enquanto o menino Jesus e os personagens todos do presépio, viviam lá para baixo, no deserto.
- Estás a mofar comigo.
- Não estou nada. O pai Natal é um gajo gordo e tem um carro puxado por renas e faz a entrega das prendas. O Jesus, nasceu numa manjedoura- ou parecido – e recebeu a visita dos reis magos, o branco, o amarelo e o preto.
- Onde raio terei ido buscar essa ideia? Olha que se dane! O Natal é como um homem quiser e eu quero que seja assim.
- Até ficas bem.
- Vamos mas limpar o canal para as rabas e o bacalhau.
- Boa ideia Manel, venha daí um brinde.
E começaram nisto, que não se sabe onde acaba, mas sendo dia de festa é de esperar prolongamento.
O farrusco já habituado a ver o dono assim vestido, deixou-se dormitar ao lado da lareira.
- Meu amigo, a comida está pronta, vamos jantar. Tu também farrusco, hoje comes connosco.
- Ó Manel, o que é aquela caixa preta pousada no canto da mesa?
- É o meu neto
-O teu neto? Não o vejo.
- Mas vais ver.
O ti Manel serviu o bacalhau com as couves e as rabas, numa pirâmide a extravasar dos pratos. Comeram calados como fazem as pessoas que estão compenetradas na comida e não têm assunto.
Terminado o repasto, disse o Manel:
- Agora vamos falar com o Zézinho que está na França.
- Como se não tens telefone?
- Ele está dentro da caixa preta. Foi o meu filho António, que me mandou pelo correio. Já experimentámos e funcionou. Levanta-se esta tampa, carregamos neste botão e o catraio começa a palrar.
- E podemos fazer perguntas e tudo?
- Não, diz sempre a mesma coisa. Mas não faz mal, é bom na mesma.
O Zé da mula desconfiou. Olhou para o cão deitado aos pés da mesa, e este confirmou.
- Estou vestido assim para lhe fazer a surpresa. Os miúdos acreditam nestas coisas.
Por magias que as há, ou outros mistérios por conhecer, apareceu-lhes em cima da mesa um miúdo pleno de vida, aos pinotes e tropelias num jardim enorme com uma estranha torre de ferro cheia de arrebites por cima da sua cabecita.
Fartou-se de falar, e o avô, nas patetices sem sentido cheias de sentimento, que quase todos os avós fazem para os netos, abanou o guizo pendente do carapuço, soprou o pó branco das barbas, ensinou os enfeites na saca de serapilheira.
Estava feliz, era uma grande noite de Natal.
O Zé da mula, perdido de família de pequeno, entrou na brincadeira e divertiu-se à grande. Chegou a dizer adeus e desejar as Boas festas.
O cão farrusco, não apanhou nada: estava estacionado nas traseiras da máquina e só via um quadrado preto pelo que desistiu de ser solidário.
Quando por artes a imagem desapareceu, os dois velhos sentaram-se de novo e encheram um último copo de aguardente.
Depois disso o Manel ficou melancólico e ressonou. O Zé ficou embriagado e ressonou.

No dia seguinte voltaram à sua vida. Tinha terminado o Natal numa aldeia remota e deserta de gentes, num País de velhos resilientes.

Bom Natal!


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