Há quarenta anos tinhamos tanto de ti
Éramos um povo amordaçado, acorrentado
Porque tínhamos tanto de ti.
Nessa manhã clara e radiosa, apesar da morrinha que caía
Como se querem todas as manhãs felizes
A minha mãe ainda cheia de ti, veio acordar-me
Dizer-me que por tua causa tinha de ir
Tinha de ir para onde tinha de ir.
Há quarenta anos tínhamos tanto de ti
Podias ser amor, tens o mesmo numero de letras
Letras diferentes, palavras diferentes, sentimentos diferentes
Como te disse podias ser amor
Mas até o amor como aliás tudo o resto nos era proibido
As canções que cantávamos eram quase ciciadas
Como as palavras, os gestos escondidos na esperança de dizer
Porque tínhamos tanto de ti.
Há quarenta anos tínhamos tanto de ti
Vivias em nós como o sangue que nos corre nas veias
Mas não eras nós nem fazias parte de nós
Eras um furúnculo bolorento e fétido
Que velhos caducos de velhos nos impunham
Mas nessa manhã clara e límpida, apesar da morrinha
Um grupo de bravos enfrentou-te e provaste o teu sabor
Amargo de fel.
Há quarenta anos deixámos de ter tanto de ti
Foste tu e todos os velhos que passaram a ter tanto de ti
Nós saímos para a rua e soltámos gargantas, cantámos, dançámos
Tinhamo-nos visto livres de ti
Com o teu desaparecimento aprendemos uma palavra
Uma palavra não, que proferimos como quem canta
Hoje querem de novo impor-te
Mas sabemos e queremos dizer não.
Como te disse podias ser amor
Tinhas o mesmo numero de letras
Letras diferentes, palavras diferentes, sentimentos diferentes
Não começas com a como quem escreve amor
A tua palavra começa por uma letra cheia de Peniches e Tarrafais
Começas por m da palavra medo, mas já nada temos de ti
E agora que de novo nos querem impor-te diremos não
Um não conjugado com a força de quem diz o verbo amar.
Fernando Monteiro
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