segunda-feira, 14 de abril de 2014

O rabisco

Passados que são 40 anos depois do 25 de Abril e com isto a andar para trás, convém lembrar às potenciais vítimas da propaganda dos saudosistas do 24 e do poder político vigente seu imitador, como era então a vida deste povo. Aqui vai um exemplo: depois das colheitas nos latifúndios do Alentejo, sempre ficava qualquer coisa. Uns restos. Como as jornas eram miseráveis e só se ganhavam quando havia trabalho, e reformas ou qualquer apoio social eram utopias apenas para os mais esclarecidos, os velhos, as crianças e os desempregados iam então, ao que se chamava, o rabisco.
Um dia, andava a minha mãe com o meu irmão mais velho ao rabisco da azeitona, finava-se a tarde, o imenso olival não tardava ficar envolto na escuridão, e os saquitos longe de estarem cheios. Até que a minha mãe disse ao meu irmão para ir depressa acabar de encher o dele a uma oliveira das que ainda não tinham sido apanhadas, que ali estava, de pernadas baixas, carregadinha de azeitona. Em má hora o fez. O guarda que estava escondido, à coca, logo apareceu. A minha mãe seria multada. Como nem pouco mais ou menos tinha dinheiro para pagar a multa, iria para a prisão. Com quatro filhos menores, imagine-se o drama. Depois de ralhar com o meu irmão e de mentir ao guarda dizendo que não o tinha mandado “roubar” e de lhe implorar que não fosse fazer queixa à GNR , o guarda mantinha-se inflexível. A minha mãe decidiu então ser mais convincente. Agarrou numa vara e pôs-se a zurzir o filho. Este, embora uma criança mas já com a duríssima experiência da vida, não desmentiu a mãe e colaborou. Passado um bom bocado, o guarda lá disse: “ bem, deixe lá já o moço, mas para a próxima não se safa!”
Eu era um menino, mas ficou-me gravado na memória, depois, em casa, a minha mãe lavada em lágrimas a esfregar com álcool as roxas nádegas do meu irmão, beijando-o e soluçando: meu rico filhinho! Meu rico filhinho!

Francisco Ramalho

2 comentários:

  1. Aprendi o que era o rabisco. Não sabia e se todos os dias aprender uma coisa nova ao fim do ano serão 365.

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