quarta-feira, 30 de abril de 2014

Outono silencioso

*Cristiane Lisita


Outono silencioso. Onde estão os galos de outrora? Por que não cantam neste quintal? Abandonaram-se às tempestades da ventania, sucumbindo o dourado do arrozal? E o céu soçobrando no cinéreo das nuvens, petúnias se despetalando além dos troncos caídos. Onde estão os galos de outrora?  Quiçá em seus poleiros onde as sombras se agigantam sob a luz soturna caiada neste momento.

Outono silencioso. Nos musgos serpenteando as entranhas do muro e das penas, demudando em frangalhos seus corações de galos.   Onde foi o albor desse solo fecundo? Quiçá nesta travessia infindável, desta hora consternada, na dualidade do voejo e do salto e o arrebate das asas, agora, cortadas.   Onde estão os galos de outrora? Que já não ostentam o vermelho escarlate das suas cristas, alcançado nas batalhas históricas a sobrestarem noites quase sem termo.

Outono silencioso. Num cucuritar percorrendo veias e centelhas da alma. Um esporão agudo, uma excrecência óssea almejando se alçar, daquelas proas verdejantes e o prenúncio de algo a abalroar.  Onde estão os galos de outrora? Cujos bicos afiados e emudecidos denunciam as brechas num outro costado.

Outono silencioso. Escavacado num relampejar de fé. Um insólito estalido raiando lá fora.  Onde estão os galos de outrora? Quiçá sob os olhares da raposa que espreita e não esmaece, aceirando taciturna. Desconhece ela os galos que jazem naqueles territórios. Não hão de se abater, nem se confinar. Quiçá um galo desperte e  comece a clarinar. “Mas, um galo sozinho não tece um amanhã”.

 Cantaria o poeta João Cabral de Melo Neto: “Ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito e o lance a outro; de outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que o amanhecer, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos”. Outono silencioso.


(Cristiane Lisita:  jornalista, advogada, escritora)














1 comentário:

  1. Que o nosso grito ecoe!
    Parabéns pela sensibilidade poética e pelo estalido à nossa consciência.

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