“Quem trabalha hoje tornou-se lixo, gente que está ali para dar a produção que eles pedem”.Esta frase é a citação das declarações de Deolinda Araújo, uma trabalhadora têxtil, que retiro de um (excelente) artigo sobre salários (especificamente sobre o “salário mínimo”) da jornalista Natália Faria, no PÚBLICO de domingo (13/4/2014).
O desemprego é, sem dúvida, o maior factor de risco de pobreza. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), em Dezembro de 2012, se, não obstante todas as transferências sociais, 18,7% da população activa se encontrava em risco de pobreza, no caso das pessoas (já ou ainda) sem emprego, essa taxa subia para 23,8%.
Todavia, Portugal é dos países da
União Europeia onde não só o desemprego mas também o emprego tende a ser mais
“pobre”.
Segundo o INE, em Dezembro de
2012, 18,7% da população portuguesa encontrava-se em risco de pobreza
(rendimentos inferiores a 409 euros). Mais de 580.000 mil eram trabalhadores (10,5%
da população activa, 12,45% da população empregada).
Esta situação piorou de 2011 (então,
eram 9,9% da população activa os trabalhadores nessa situação) para 2012. E,
certamente, voltou a agravar-se em 2013, ano em que, segundo dados recentes do
EUROSTAT, já não serão os 18,7% de 2012 mas mais de um quarto (25,3%) da
população que se encontra em risco de pobreza e exclusão social. É preciso ter
em conta que em 2013 se verificou uma grande desvalorização de salários (há
estudos que a avaliam em, pelo menos, 14%), em decurso do aumento de impostos,
do aumento da duração de trabalho na função pública e, muito, da alteração à
legislação laboral (Lei 23/2012, de 25 de Junho), designadamente, da redução do
acréscimo por trabalho suplementar, dos feriados e das férias.
E também, evidentemente, do
“congelamento” dos salários nominais, por paralisação da contratação colectiva
e, mesmo, da retribuição mínima garantida (“salário mínimo”), a qual, aumentada
em Janeiro de 2011 em 10 € mensais, se manteve, até agora, em desrespeito por
um acordo firmado no Conselho Permanente da Concertação Social (CES) em
Dezembro de 2006, em 485,00€ (quando, segundo o referido acordo, logo em 2011,
deveria ter ascendido a 500,00€ mensais).
É uma banalidade, por ser demais
evidente, que o trabalho, ter um emprego, é o principal determinante nas
condições de vida das pessoas.
Contudo, quem conhece bem o que
se passa nos locais de trabalho sabe que desta evidente realidade - a
repercussão dos baixos salários e da degradação das condições de trabalho nas
(pobres) condições de vida – há um outro lado que, mais encoberto, é,
perversamente, a sua correspondência biunívoca: a desvalorização do trabalho e
a degradação das condições de trabalho por via das más condições de vida,
designadamente, da pobreza.
As condições de vida pessoal,
familiar e social são indissociáveis dos salários e das condições de trabalho, visto
que, de algum modo, as pessoas sempre acabam por “levar a casa para o
trabalho”, tal como sempre levam (e até literalmente, muitas vezes) o “trabalho
para casa”.
A expectativa legítima (e legal,
a vários níveis) é que esta interdependência entre as condições de trabalho e
as condições de vida se verifique num permanente ciclo virtuoso, isto é, numa
relação directamente proporcional entre, por um lado, a realização pessoal e
profissional, a integração social, a dignidade, a saúde e a remuneração justa
que devem ser garantidas por um trabalho
digno (um dos referenciais centrais da Organização Internacional do
Trabalho) e, por outro, a estabilidade económica, pessoal e social que
minimamente permita garantir o sustento e a dignidade pessoal e social, bem
como constituir e manter a família.
Mas, num contexto de
empobrecimento (mesmo) de quem trabalha, este ciclo tende, perversamente, a
tornar-se tornar vicioso.
Desemprego, baixos salários e precariedade
laboral, por um lado e, por outro, pobreza e exclusão social, são fenómenos
fortemente correlacionados, negativamente sistémicos.
Para quem está desempregado, a
degradação das condições de vida pessoal e familiar induz uma atitude de
procura e “aceitação” de um trabalho “a qualquer preço”, mal remunerado, precário,
clandestino ou dissimulado (como é o caso dos famigerados “falsos recibos
verdes”), sem condições de trabalho.
Para quem está empregado, o medo
de também cair no desemprego, acentuado pela progressiva falta de protecção
legal no emprego, pela precariedade do vínculo laboral e pela fragilidade dos
apoios sociais (não apenas porque têm vindo a ser eliminados ou reduzidos mas,
também, pelo quanto é causada pela não declaração ou subdeclaração patronal dos
salários à Segurança Social), encontra na pobreza, na degradação das condições
de vida, um “caldo” onde germina, cresce e se generaliza uma atitude dos
trabalhadores de a tudo se sujeitarem e serem sujeitos no trabalho, de não
exercitarem (ou até, tão só, de reivindicarem) os seus direitos, mesmo dos mais
elementares e fundamentais, como
é o direito a uma remuneração legal e justa, bem como a condições de trabalho
que garantam a segurança, a saúde, a integridade física, a vida, a dignidade de
não serem tratados como “lixo”.
E assim, a pobreza e sofrimento
na vida pessoal e familiar que resulta da degradação das condições de trabalho
e dos baixos salários podem ser, perversamente, instrumentos da obtenção de (ainda)
mais trabalho, da indigna exploração de quem trabalha.
Daí que o trabalho, ao “produzir”
a pobreza das pessoas que o realizam, pode também, por essa via, fazer o “trabalhinho”
de as transformar em “lixo”, ao, objectivamente, obrigá-las a submeterem-se a
condições de trabalho indignas, à sobreintensificação (em ritmo e duração) do
trabalho, à desregulação impune de direitos sociais no trabalho.
Para além das empolgantes
proclamações contra a pobreza e (contra)declarações de propósitos
político-partidários de aumento do “salário mínimo”, é necessário que o poder
político, a administração e as instituições pertinentes prevejam e integrem
este risco social na análise das consequências das suas opções e práticas
políticas, administrativas e institucionais. A fim de evitar ou no mínimo prevenir
as consequências humanas e sociais que, também deste modo perverso, da pobreza podem
advir.
Por mais que prepondere um
discurso político, académico e mediático que, assente em argumentos
essencialmente mercantis e financeiros(istas), relativiza os referenciais
mínimos da dignidade das pessoas, como tal e como trabalhadores, não é humana e
socialmente admissível que alguém, para não correr o risco da miséria e da indignidade
na sua vida pessoal e familiar, tenha que, no trabalho, a “ganhar a vida”, se
sujeitar à miséria da indignidade (de ser “humilhado”, de lhe “fazerem a vida
negra”) e, até, ao risco de perder a vida. Ou, pelo menos, pela degradação da
saúde e das condições de “paz”, de dignidade, de sustento (pessoal e familiar),
ao risco de ir perdendo vida.
Urge redignificar e revalorizar o
trabalho, pôr cobro a este círculo vicioso do trabalho a “produzir” (mais) pobreza
e da pobreza a “produzir” (mais) trabalho.
Quem trabalha não pode continuar
a “tornar-se lixo”.
João Fraga de Oliveira
Inspector do trabalho (aposentado)
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