O elo perdido
*Cristiane Lisita
Maria Clara se olha no
espelho e não se reconhece. Sabe ela da lida do tempo. Não se olvida que, em
algum lugar ou momento, permitiu escapar o elo entre o que foi e o que hoje é. Quantos
anos teriam se passado desde a última vez que enxergou a si própria num vestido
azul, tecido de sonhos, sem rasgos, sem rugas? Quantos anos teriam se passado
até que pudesse entender o arfar da vida a perdurar na memória? E o reflexo do
espelho a denunciar, tantas vezes, o que não se quer ver.
A
imagem se esvai, Maria Clara, como a água cristalina da chuva despetalada no
chão de um instante de tamanho albor. Virão como um reflexo nacarado aqueles
dias ensolarados em certo descampado, sob a sorte de alegrias mil, ao suspiro dos
jasmins e das manhãs. Debruçarão sobre as aurículas dos muros verdejantes
musgos encortinando o afeto tido e também o não conhecido. A imagem se esvai,
Maria Clara, como o raio que lampeja breve sob a espinha da existência. Subirão
à tona toda a magia e plenitude havida, do folhear do livro recebido, da mão
espalmada em outra mão, do candeeiro que esculpia sombras, e não permitia
sentir a ausência.
Compreende
o que mais me sensibiliza, Maria Clara? Crer nas giestas que nunca hão de fenecer.
Uma brisa qualquer, numa semana qualquer arrebatará dos seus galhos um amarelo
fulgente a tingir a relva, e aqueles finos sentimentos se alçarão no fundo da
alma, como borboletas.
Compreendes o que mais me
sensibiliza? Perceber que ainda podes olhar no espelho e encontrar uma
imagem. Imagem que se dissipa, Maria
Clara, ainda que no mar iracundo das aflições, das sensações personalíssimas,
da noite quase sem termo, do edito condenatório de algo não vivido. Cantava em versos Mário Quintana: “Esse
estranho que mora no espelho (e é tão mais velho do que eu) olha-se de um jeito
de quem procura adivinhar quem sou”. Maria Clara, tu sabes quem és. Quando mirares
a ti mesma, não tenhas medo.
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