segunda-feira, 23 de março de 2015

Para onde vai o trabalho humano?

Já lá vão mais de 50 anos, foi editado em Paris um livro de referência de um grande precursor da Sociologia do Trabalho: Georges Friedman (Paris, Maio de 1902 – Paris, Novembro de 1977).
O livro tem por título, em tradução livre para português, Para Onde Vai o Trabalho Humano? (no original, Oú Va le Travail Humain? – Edições Gallimard – Paris-1963).
Passado meio século, o título (e, aliás, o conteúdo) deste livro não podia ser mais actual e pertinente.
Para onde vai o trabalho que tantos procuram encontrar e que tanto desaparece? Um aparente mistério.

Vai, é certo, para o exterior. Por exemplo, através das deslocalizações da produção para países de outros continentes ou, por uma forma mais individualizada, através do teletrabalho intercontinental. Vai ainda para o exterior, obviamente, através da emigração (que, em Portugal, voltou a níveis dos anos 60, nos últimos três anos mais de 350.000 portugueses) e do destacamento de trabalhadores (como tem sido o caso da construção civil).

Mas vai também para o interior. Para o interior do país, através das cadeias de subcontratação e de trabalho temporário, em que muito trabalho “desaparece” sem deixar rastro.
Para o interior das empresas (e, indirectamente pela “porta” da externalização de serviços, da própria administração pública), onde “desaparece” através do trabalho clandestino (sem qualquer registo ou declaração à ACT ou à Segurança Social), dos “estágios” não remunerados (de que ainda há descaradas ofertas nos jornais), dos falsos “recibos verdes”, dos biscates, etc..

Mas o que é talvez mais perverso é que muito desse trabalho que “desaparece”, vai para o interior das próprias pessoas. Como?

Através da sobreintensificação (ritmo ou duração) e degradação das condições de trabalho em que é exercido. Assim é quando, por exemplo, despedidos, os trabalhadores vêm para o “exterior” (para o desemprego ou para a emigração) mas, no “interior” das empresas (ou da administração pública), não sendo em regra esses trabalhadores substituídos, o trabalho realmente fica lá todo. Só que, a ter que ser realizado por menos trabalhadores,  “desaparece” no interior, literalmente (no corpo e na mente), das pessoas que (ainda) lá restaram, as quais, muitas vezes, em decurso de uma organização de trabalho e de modelos de gestão em que impera a “produtividade” e “competitividade” a todo o custo (incluindo o da condição humana), o têm que passar a realizar em condições de sobrecarga física ou mental (muitas vezes até ao limite do esgotamento) e da perda de dignidade a que se sujeitam pela insegurança da precariedade do emprego e pelo medo do desemprego que “cá fora” grassa.

Desta forma, o trabalho “desaparece” para o interior, para o âmago das pessoas (e das suas famílias), no sentido, dramático, das nefastas consequências do ponto de vista de saúde e condição social implicadas pela sobrecarga física e mental no trabalho. De que são exemplos o crescimento epidemiológico das doenças e lesões músculo-esqueléticas, o stress, o burnout (esgotamento físico e ou psicológico), o assédio moral, o suicídio mesmo.

Outra via pela qual “desaparece” (nomeadamente do conhecimento público) o trabalho, o trabalho real, o trabalho que realmente as pessoas executam (muitas vezes em precárias condições de dignidade e de segurança) nos locais de trabalho, são as estatísticas que fazem aparecer o “crescimento” do emprego mais “ágil” e “flexível” e a economia mais “sustentável”, como dizem por aí, com muita convicção (como convém neste ano de eleições), muitos governantes e “comentadores”.  

Enganam-se os teóricos que advogam o “fim do trabalho” através da robotização, da automatização, ou da “gestão”, partindo de um conceito meramente mecanicista, financeirista ou gestionário do trabalho.

É que, mais do que um conceito económico, jurídico, filosófico, sociológico, gestionário ou técnico, o trabalho é um conceito essencialmente humano e consequentemente social. Consubstanciando-se nas pessoas que trabalham, o trabalho é “apenas” aquilo que as máquinas não podem fazer.
É por isso que, quando o trabalho aparece, é essencialmente das pessoas que o trabalho “vem”.

E também quando o trabalho “desaparece”, em última análise, para o bem ou para o mal, é também para as pessoas (para as pessoas que trabalham, para as pessoas que pelo desemprego foram privadas de trabalhar ou para as pessoas que pela doença ou pela reforma deixaram de trabalhar) que o trabalho “vai”.
Voltando ao início deste texto, com todo o respeito pelo originário (outro) sentido que o sábio título do referido livro de Georges Friedman encerra, afinal, no sentido que aqui se desenvolve, pouco mistério haverá na questão de “para onde vai o trabalho humano?”…

João Fraga de Oliveira
Inspector do trabalho (aposentado)





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