segunda-feira, 24 de dezembro de 2018


Da ilusão dos valores efémeros

Olívia e Eugénio, personagens do livro anexo, conheceram-se quando estudantes e tiveram um relacionamento e uma filha, mas o apetite dele por uma vida faustosa levou-o a trocá-la por uma herdeira rica; transcrevo parte de uma das muitas cartas que ela lhe escrevia para a gaveta, a que ele teve acesso depois de ela ter morrido.
     
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...”Lembras-te daquela tarde em que nos encontramos nas escadas da Faculdade? Mal nos conhecíamos, tu me cumprimentaste atrapalhado, eu te sorri um pouco desajeitada e cada qual continuou o seu caminho. Tu naturalmente me esqueceste no instante seguinte, mas eu continuei pensando em ti; e não sei porquê, fiquei com a certeza de que ainda havias de ter uma grande importância na minha vida. São pressentimentos misteriosos que ninguém consegue explicar.

Hoje tens tudo quanto sonhavas, mas no fundo te sentes ainda como aquele Eugénio indeciso e infeliz, meio desarvorado e amargo subindo as escadas do edifício da Faculdade envergonhado da sua roupa surrada. Tens tido crises de consciência, não é mesmo? Pois ainda passarás horas mais amargas. Li muitas vezes o teu nome ligado ao do teu sogro, em grandes negócios, monopólios e não sei mais quê. Estive pensando na fúria cega com que os homens se atiram à caça do dinheiro. É essa a causa principal dos dramas, das injustiças, da incompreensão da nossa época.

Peço-te que abras os olhos, Eugénio, que acordes enquanto é tempo. Peço-te que pegues na minha Bíblia, que está na estante dos livros e leias apenas o Sermão da Montanha.  Os homens deviam ler e meditar nesse trecho, principalmente no ponto em que Jesus nos fala dos lírios do campo, que não tabalham nem fiam e no entanto nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu como um deles. Está claro que não devemos tomar as parábolas de Cristo ao pé da letra e ficar de papo para o ar, esperando que tudo nos caia do Céu. É indispensável trabalhar, pois um mundo de criaturas passivas seria também triste e sem beleza. Mas precisamos dar um sentido humano às nossas construções. E quando o amor ao dinheiro, ao sucesso, nos estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do Céu.

Há na terra um grande trabalho a realizar. É tarefa para seres fortes, para corações corajosos. Não podemos cruzar os braços enquanto os aproveitadores sem escrúpulos engendram os monopólios ambiciosos, as guerras e as intrigas cruéis. Temos de fazer-lhes frente. É indispensável que conquistemos este mundo, não com as armas do ódio e da violência e sim com as do amor e da persuasão.Considera a vida de Jesus. Ele foi antes de tudo um homem de acção e não um puro contemplativo. Quando falo em conquista, quero dizer a conquista de uma situação decente para todas as criaturas humanas, a conquista da paz digna, do espírito de cooperação. E quando falo em aceitar a vida não me refiro à aceitação resignada e passiva de todas as desigualdades, malvadezas, absurdos e misérias do mundo”...


Amândio G. Martins



2 comentários:

  1. Leitura "obrigatória" do nosso tempo, não era? Boas Festas para si e para os seus!

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  2. Obrigado. Faço votos do mesmo para o senhor, para os que lhe são mais queridos e para todo o mundo em geral.

    Quanto ao livro, sempre que a gente regressa a um livro que já leu, encontra algo em que não tinha reparado ou não tinha dado importância nas leituras anteriores...

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