sábado, 15 de dezembro de 2018

Um Natal às escuras



-As luzes já brilham por ruas e avenidas, enquanto a calçada húmida reflecte os seus raios. Mas há silêncio esmagado que se julga ser uma expressão da paz em suspense, que a chuva arrefece. Homens e mulheres vão surgindo aos poucos como vultos, e por entre sombras espaçadas. Talvez estes tenham como rumo, o trabalho, e ainda a noite se demora na manhã que nasce. As montras ostentam algum luxo. Noutras, apenas grãos da vida, que se destinam à mesa pobre da ceia feliz, se a família se juntar e o Senhor não faltar. A água escorre em magros rostos, como lágrimas disfarçadas em pensamentos duros, que se arrastam passo a passo distraídos e pesados, mas no caminho do ganha-pão, que o patrão exige da mão-de-obra a baixo custo. Com este salário talvez a prenda dos filhos e dos demais que hão de chegar, fique mais uma vez adiada para uma festa que é de esperança antiga, e sempre também, de preocupação. A mãe e avó, está de cama, sob vigilância do postal da santa da sua devoção, emoldurada. O pai e marido sem trabalho. O bebé a precisar de fraldas, que as que há estão a secar na corda, ao tempo, que não ajuda. Não há lareira que aqueça, que onde ela se incendeia o perigo espreita, e o veneno mata. Por isso este frio por toda a casa e na alma que cala. Também não há chaminé que anuncie, que nesta casa mora gente, e por isso o Pai Natal não pode entrar por ela e deixar os presentes, que nos contaram nas histórias da infância ser uma tradição, haver, e que começavam todas por, “era uma vez”. O velho barbudo e gordo, carregador do saco da fantasia universal, não tem culpa, nem deste inverno nem desta forma de vida, magra. Este Natal, vai ser como sempre foi. Descolorido. A contar trocos, a desejar que não falte a luz, nem as velas, já tocos só, juntas aos medicamentos que a mãe nossa necessita, e quase a acabarem. Os meus meninos, ao menos têm saúde e o pai olha por eles, enquanto eu caminho, trabalho, e levo algum sustento de volta a casa, para repartir pelos que lá ficam. Talvez o Artur ainda venha a ter a mochila nova e as sapatilhas que lhe prometi no ano passado. Talvez. Tenho sorte. Sou rija e aguento todos os natais que um atrás de outro, nos castigam, e nos fazem comer o pão que o diabo amassa junto ao meu “presépio” que não se desfaz e aonde dependuro as agruras como se fossem rebuçados. Ainda bem que a Festa sagrada em honra do Menino Divino, só se comemora uma vez por ano. Deve ser Ele, que não quer, que a gente sofra mais vezes nesta época, que de fartura será por lá, mas dor esconde por aqui. Estou-lhe grata por isso. Por viver entre algum amor. Obrigada, meu Jesus. Louvado sejas!*

-*(in "Natal em palavras"-Chiado)


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