Há seres que são humanos, mas não são pessoas. Ser pessoa,
implica a consciência de si, estar revestido da sua pessoalidade, igualmente reconhecer
a existência do outro – estabelecendo ligações de comunicação que criam o
entendimento, a identificação - como alguém parecido e diferente, um outro
individual.
Há seres que são humanos, mas na realidade são vegetais com
pernas que andam. E andam por aí, soltos, a causarem muitos danos.
Que pessoas humanas aguentam a desfaçatez, a prosápia, a
injustificável frieza de não serem competentemente capazes e aparecerem como
vermes e dizerem impávidos, o impossível de dizer?
São estes os seres que nos mandam, e nós, patetas bem mandados,
aceitamos.
Olhamos para a televisão e ficamos empolgados com a coragem dos
miúdos em Hong Kong, a dizerem não com um banal chapéu de chuva na mão.
Sensibilizamo-nos com o sofrimento, a injustiça, a opressão, a
omissão, a arbitrariedade, a soberba, a arrogância, a sobranceria, o snobismo: dos outros.
Mas todas essas incomodidades não impulsionam suficientemente a
voz para expulsar um NÃO assertivo.
Todas essas indelicadezas são vividas, como espectadores
diletantes, no doce recato do lar à hora do jantar e enquanto passam esses
folhetins nos noticiários televisivos.
A seguir saciamo-nos com outras misérias, nas doses
sub-terapêuticas de veneno diário, nas histórias de vida das novelas, ou nas
novelas dos comentários desportivos.
E é suficiente para irmos dormir, cansadíssimos, mais ou menos
entediados com a existência madrasta.
Invariávelmente vamos acordar no dia seguinte com a filosofia
pindérica e muito portuguesa, que hoje ouvi no comboio da Linha de Sintra:
“Oh mulher parece que estás a dormir?”
“ E estou! Sou acordo às seis, quando saio do trabalho…”
Ela, ele, eles, nós, andamos a esconder-nos uma coisa relevante:
não só não acordamos às seis (e somos incompetentes se somos assim, porque
mesmo não gostando da forma como se ganha a vida, deve-se dar o melhor, pela
dignidade, bem precioso), como nem às oito nem há meia-noite, nem nunca.
Se despertássemos alguma vez, no dia a seguir aconteceria a
revolução que nunca aconteceu.
Somos uns cobardes encostados a coçar as costas nas paredes,
assobiando para o ar, esperando que alguém faça um passe de mágica, que só nós
poderíamos fazer para mudar o estado do Estado.
Exemplos de como isso seria possível? Se todos os professores
neste país – colocados e solidários com os outros - não derem uma única aula,
se todos os funcionários judiciais não mexerem num único processo, se todos os
profissionais de saúde só executarem os actos médicos essenciais à preservação
da vida humana e nada mais, se os policias deixarem de proteger os políticos,
os banqueiros, e outros, se tudo isto for feito um único dia, no dia a seguir,
temos um mundo novo.
A grande questão é: e no dia a seguir?
As sociedades – a história tem muitos exemplos desses – na
imitação dos seres vivos – ou estes no seu exemplo - criam mecanismos que aparentemente
não existiam até fazerem falta: estratagemas de recriação, de reequilíbrio, de
sustentação, de regulação interna.
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