Há momentos que nem no humor com que embrulhamos as palavras,
para que não sejam tão ásperas, se consegue tirar da cartola - depósito quase
inesgotável onde inventamos os truques de mágica tontos e simplistas, que ainda
nos fazem sorrir para aguentar a total ausência dos sentidos da vida – um alumbramento
de jeito.
Há realmente momentos, de vazio completo.
Malabaristas que somos, ainda assim, mesmo assim, pantominamos
os que amamos, distraindo-os (protegendo-os), tentando abraçá-los para que não
vejam, não sintam, não chorem, não lhes passe sequer pela cabeça a ideia que
viveram a sua vida em vão.
O meu Pai tem oitenta anos, é e sempre foi um homem muito
decente, não porque seja eu seu filho, a dizê-lo.
Viveu a sua vida de uma forma banal e sem história: trabalhou
muito, contribuiu sem nunca discutir ou questionar, abdicou facilmente de
pequenos excessos para educar bem os filhos e depois, merecedor mais que
absoluto de poder sentar-se sem cerimónias a admirar a sua obra, foi obrigado a
pôr-se de novo em pé porque os filhos ainda precisavam dele.
Possuidor da pequena fortuna de anos e anos de descontos para
uma reforma de nababo (pouco mais de mil euros), foi chamado a repartir essa orgia pelos
filhos, necessitados estes de viver também de uma forma banal e sem história.
Pela primeira vez na sua vida de oitenta anos, entrou hoje
necessitado de um aconselhamento médico, na urgência de um hospital de Lisboa.
Vinha em mau estado, e mesmo assim a conter-se, para não
incomodar os seus, e não ocupar com atenções a si, o espaço de outros
eventualmente mais necessitados.
Parvoíce de um velho tonto, que estava mesmo necessitado de
ajuda.
A ambulância do INEM foi a casa, rápidos e de um profissionalismo
que nos deixou inchados de orgulhosos.
Na triagem da urgência do hospital, calhou-lhe a pulseira
amarela: urgente.
Como nas tempestades climatéricas, a gravidade da situação vai
do verde ao laranja/vermelho (neste caso acrescentaram o azul, como gravidade
nenhuma, pulseira para os utentes que não tendo médico de família, ou não tendo
consulta em tempo útil para o mesmo, têm que se dirigir à urgência para tomar o
tempo e os recursos escassos dos profissionais).
Num painel televisivo, uma espécie de gráfico com as cores,
indica os tempos médios de atendimento.
Para os verdes (os que não têm nenhum sinal de estretor nos dias
mais próximos) cinquenta minutos. Para os laranjas/vermelhos, muito urgentes,
vinte minutos (parece ajustado: em vinte minutos não se vive nem se morre, é o
tempo suficiente a acontecer qualquer apoplexia na sala de espera, entre
chegarem os maqueiros, conduzir a maca entre as filas dos utentes, e chegar a
tempo do médico de banco indicar aos familiares o número da funerária). Os
amarelos, a cor simpática que deram ao meu pai – a dos urgentes – tinha um
tempo de atendimento a rondar uma hora e vinte e sete minutos.
Ao meu pai que foi depositado numa cadeira de rodas, com a
cabeça a pender constantemente para a frente – a cabeça – não lhe pareceu nem
bem nem mal, ao filho pareceu que pronto, dado que se tinham que despachar os
azuis e os verdes, e já que os laranjas antes mesmo de chegarem ao hospital já
eram póstumos, era de toda a justeza, que a um
cidadão banal de oitenta anos descontados até ao tutano, lhe fossem
oferecidos uma hora e vinte sete minutos, a ver se a coisa pendia para o clube
dos laranjas, ou dos verdes.
Ele aguentou, e lá tiveram que o atender. Um jovem médico no
primeiro ano do internato da especialidade, agraciou-nos com a bênção – e nós
somos ateus – de ser um jovem médico no primeiro ano da especialidade mas de
uma sensibilidade rara e que seguramente já o sendo, vai ter uma carreira
brilhante.
Saiu-nos o euro milhões, apesar do meu pai nem se ter apercebido
disso. AGRADEÇO-LHE MUITO!
A urgência de um hospital central de Lisboa estava a ser
garantida por uma dúzia de miúdos cheios de boa vontade. Avistei ao longe
alguém mais velho, de bata e estetoscópio, com um ar muito cansado e gasto, talvez desistente.
Depois as coisas correram bem: deram-me um frasco para recolha
de urina e a casa de banho da urgência estava fechada por “questões técnicas”
(descobrimos depois de uma aventura exploratória por salas e recantos, a casa
de banho da ortopedia, atapetada com papel higiénico e líquidos presumíveis no chão),
na sala de espera do TAC, podíamos utilizar uma caixa de cartão aberta para
deitar o lixo, onde conviviam luvas, compressas com sangue, invólucros de
rebuçados e lenços, algumas migalhas de bolo.
Cansados de esperar, e como não aparecia ninguém para transportar
a cadeira onde tinha o meu progenitor depositado, pusemo-nos eu e ele a caminho
da urgência (como já tínhamos explorado o local na busca do wc, já conhecíamos razoavelmente
o hospital). Graças a deus, encontrámos o tubo do soro que anteriormente tinha
estado ligado à sua veia, que pendia, pendendo e pingando à espera que o dono voltasse,
e voltou, pingando também do cateter do braço esquerdo, mal vedado, que lhe
manchavam as calças compradas na rua dos Fanqueiros vai para trinta anos.
Após sete horas, em que o meu Pai, sem o saber, usufruiu dos
serviços que andou a pagar toda a vida, deu-se o aborrecimento de ter que ser
internado!
Ele não queria dar despesa, mas lá terá que consumir
antibióticos genéricos de quarta escolha; tocar a campainha cinquenta vezes pela
enfermeira, que já não as há; e ser corrido para casa ao fim de dois dias para
aprimorar a estatística das taxas de ocupação hospitalar.
Se o meu Pai aos seus oitenta anos tivesse a graça de estar em
plena lucidez, teria ficado profundamente humilhado pela forma como o seu dinheiro
foi tratado.
Ele merecia melhor, nós merecíamos mais.
O que vos fizemos, para
merecer a omissão?
Não sei o que diga, depois de ler este relato cheio de sensibilidade e tão humano. Espero que o seu pai seja bem tratado como merece, pois, quem criou os filhos da maneira como o fez, merece-me todo o respeito. Eu já não tenho pai, até porque estou perto dos 80 anos, e sei, por experiência própria, o que se nos acalma, nos momentos difíceis, quando se soube educar os filhos e neles confiamos.
ResponderEliminarCá no burgo tudo está a ser uma continuado ENSAIO SOBRE A LOUCURA COLECTIVA, engendrado por 'abortos' das piores proveniências. Mas que grandessíssimos fdp.
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