Naquele dia levantei-me, bem-disposto.
-“Que tal hoje irmos dois dar uma passeata?- perguntou minha alma, que
tinha saído de mim. "Há tantos anos que ando dentro de ti e nunca me
levaste a fazer turismo religioso!" suspirou.
Olhei-a, de frente. Levar minha alma a passear? Que ideia!
Quantos contos é que isso me iria custar? Dois, três, cinco contos de
reis? Bem, um dia não são dias! Além disso, também lhe devo favores,
pois, quando está bem disposta alegra e dá sentido às ações do meu
corpo. Há que ter gratidão. Seja, anuí. Minha alma pulou de alegria. Eu
fui tomar banho. Ela, entretanto, foi até à janela tomar banho
espiritual, banhar-se nos lindos raios de sol.
A Primavera estava no ar, era um belo dia para passear.
Depois de prontos, lá fomos os dois sem roteiro apanhar o autocarro. A
alma, já fora de mim, apenas encostada ao seu reboque corpóreo, a
apreciar a paisagem, admirada, escutando a passarada.
Logo ao
entrar no autocarro escondeu-se dentro de mim, para não pagar bilhete ( a
pobre, devido a anos de contágio com o senhorio, já tinha aprendido a
ser um pouco materialista: além disso, dentro de mim, sempre ficaria
mais abrigada contra eventual condução desalmada, o que era frequente.
O autocarro ia repleto de pessoas, a caminho do trabalho. A felicidade
estava ausente naqueles rostos tristes e conformados. As conversas eram
típicas de pessoas mal remuneradas; sobre a má assistência social, sobre
doenças dos filhos, sobre os mandriões dos deputados, que querem mais
“mama”, sobre o aborto, etc.
Ainda bem que minha alma ia dentro de
mim e não ouvia estas tristes histórias. Só ao passarmos diante do
primeiro templo, dos Jeová, face à rua, ela, como que adivinhando,
tentou assomar a cabeça, mas foi logo por mim repreendida, porque podia
ser vista pela alma do motorista, que olhava pelo espelho.
Ao passarmos pela igreja do Bonfim não a segurei; fugiu de mim! Zanguei-me.
Quando voltou, ia eu já a chegar ao Campo 24 de Agosto, ralhei-lhe e
segurei-a pela mão. Finalmente, chegamos ao Bolhão. Saímos do autocarro,
eram dez para as onze.
Minha alma continuava irrequieta. Tinha
visto a Capela das Almas, queria lá fazer uma visita. Larguei-a de mão.
Entrou e ficou. Era hora de missa.
Eu, cá fora, enquanto esperava
fui dando uma vista de olhos pelas ementas dos restaurantes. Passado
algum tempo, apareceu-me ela, apavorada porque, a meio da missa
começaram a pedir dinheiro, mas ela não tinha nada! Estava tesa, embora
cheia de fé!
Perguntou-me para que era o dinheiro. Eu lá lhe
expliquei que o dinheiro era para o azeite, destinado a alumiar as almas
nas trevas.
-“Mas eu vejo bem”, retorquiu, admirada!
-"Ah, mas tu és uma alma especial! Tu até vês bem de mais", disse-lhe.
Depois da missa ainda a levei, a pé, à igreja da Trindade e à da Lapa, mas ela ainda não estava farta, queria ir à Sé.
-“Alto", disse eu.! Tive que impor a minha vontade!
-"No meu corpo quem manda na alma que em mim mora sou eu” disse-lhe.
Ela sabia que sem meu copo não ia a lado nenhum!
-"Agora vamos almoçar, o resto fica para a parte de tarde. Entra de novo em mim”, ordenei.
Ficou amuada, certamente a adivinhar o pecado da gula em que muitas
vezes meu corpo cai. Dirigi-me, numa grande superfície comercial, ao
piso da restauração, onde havia pequenos e grandes restaurantes, com
comida de muita origens! Ele era comida chinesa aqui, comida francesa
acolá, italiana, indiana, israelita, americana, etc, e muita, muita
batata frita!
Ouvi um dó de alma! Minha alma estava perturbada
ao ver tanta comida e para ela nem uma hóstia! Mandei-lhe, em
pensamento, uma mensagem dizendo que era a consequência da global da
livre circulação de pessoas e dos hamburguers!.
Minha alma
continuava preocupada, dizia-me que eu só tinha uma barriga e ali estava
rodeado muita comida. Tranquilizei-a: não me iria acontecer nada de
mau. Apesar de tanta estranha comida, fui na trivial posta de bacalhau
cozida.
Enquanto eu comia, minha alma foi dar uma volta rapidinha
para reconhecer o exterior. Voltou, espantada, por ter topado com
fachadas de outros templos, diferentes que alimentam outras almas.
Reparou em sinagogas, mesquitas, templos batistas, adventistas,
anglicanos, presbiterianos, mórmones, ortodoxos, da igreja Universal e
outras, que por aí há!
Depois de ter pago o almoço, continuámos
nosso passeio. Além da Sé, da igreja dos Congregados, da de São
Francisco, de S. Pedro, de São Bento da Vitória não queria ir embora sem
ir a uma sinagoga!
-“Chega”, disse eu. Que alma tão curiosa! Tou farto.
De repente, tive uma ideia: E se todas as igrejas tivessem filiais nos
Centros Comerciais? Ou, então, um Centro Comercial Religioso? Seria
muito mais prático.
Um Centro Comercial Religioso, onde todas as
religiões e igrejas estivessem sob o mesmo teto! Seria um ecuménico
local de encontro de todas as almas. Enquanto cada alma estivesse no
templo da sua fé os corpos poderiam, cavaquear, confraternizar, comendo
um pastel, beber um café e ver as promoções de quem levava mais barato
para salvar a alma. Seria como no Parlamento; com os diversos partidos,
de diversas ideologias, debaixo do mesmo teto, também as diversas
religiões rezando e apresentando programas e promoções de salvação
espiritual num Centro Religioso Comercial! Seria a religianização do
espaço!
Só que, talvez, para a construção do Centro Comercial
Religioso fosse necessário obedecer a qualquer norma europeia, com
quotas de almas para cada igreja. Talvez se tivesse de reestruturar o
setor e, de certeza, ter de despedir muitos pastores! Todavia,
melhorava-se a competitividade e a relação sacrifício/benefício! Além
disso, poder-se-ia beneficiar dos subsídios europeus para pagamento, a
fundo perdido, do despacho das almas para o Paraíso. Mesmo as que fossem
para o Inferno teriam um desconto no transporte!
De repente, minha alma deu-me um safanão!
–“Tu tens sempre muitas ideias, mas essa não. Tu bem sabes que cada
alma é livre, embora entrando em muito e diverso templo nunca nele vive!
Para quê um Centro Comercial Religioso? Não te esqueças de que é
preciso apoiar o pequeno comércio, apoiar as capelas, não as catedrais”,
lembrou.
-“Mas, toda e qualquer religião sonha com a união, com
a concentração, com a globalização da sua fé, não com a
regionalização”, argumentei.
-“Pois sim, mas como sabes, é preciso dividir para reinar”, ripostou.
Francamente, não chegamos a acordo, mas acho que seria altamente
atrativo, concorrencial e turístico um Centro Religioso Comercial, onde,
frente a frente, estivesse uma mesquita e um templo católico, ao lado
duma sinagoga, duma igreja protestante, ortodoxa, presbiteriana,
luterana, universal, sunita, shiita, xintoístas, pajés, orixás, etc
Enfim, todo o mundo, como acontece com os restaurantes!
Seria uma sã convivência com concorrência, além de comercial para os pastores-investidores dos "rebanhos" espirituais.
Talvez com ajudas esta ideia vá para a frente: Um Centro Religioso
Comercial em cada Continente, com pingos doces de fraternidade.
…….xxxxxxxxx………….
Autor: Silvino Taveira Machado Figueiredo
Gondomar
Nota do autor: Ao reler meus textos antigos, topei com este, do tempo
em que eu era mais doce, mais meigo, mas talvez já Charlie.
Gostei muito. Mas, agora, pergunto: o JN publicou o texto na íntegra? Se sim, foi uma milagre!
ResponderEliminarNa íntegra não, porque corrigi algumas vírgulas e acrescentei o os subsídios para os despachos das almas, assim como os pingos doces. De resto, tufo integral, publicado como um "Conto do Leitor- Na altura, não fiquei admirado,mas se fosse hoje ficaria!. Abraço
Eliminar