Ninguém que se considere escreve cartas. É difícil, consomem
tempo, a usufruir-se noutras correrias que não levam a nada. Escrever cartas é
piegas.
No intervalo da chegada de uma frase ao apeadeiro do seu fabricador
e até ao apito de partida para a próxima, sentados na estação do entretanto,
não resta outra ocupação ao operário senão pensar. Cansa, assusta e compromete.
É uma actividade de risco mal remunerada.
Quando se escreve, não se pode apagar, o que é um embaraço.
Tenta-se histéricamente ocultar o que se escreveu não se querendo escrever, mas
fica sempre a marca probatória para os mais atentos – e há sempre uns chatos de
uns atentos, que se "pelam" por apanhar uma fraqueza nossa.
Assim que escrita, a palavra esparrama-se no papel a apanhar
sóis e bronzeados, e valendo pelo que diz, nas conjugações com a anterior e com
a que se põe a seguir, marimba-se para as consequências de ter sido parida.
Deixou de ser um problema seu.
Escrever é uma matéria muito trabalhosa porque obriga a cuidados
na grafia – a escolha de uma caneta decente - para que fique bonita, vaidosa
nas suas roupagens, não se vejam as imperfeições.
Quando se faz a coragem de escrever uma carta, e terminá-la, somos
obrigados a levá-la de mão dada até ao correio - com mil cuidados – apor um
destino no sobescrito, colar meticulosamente a cola da lombada e do selo,
confirmar e sua inviolabilidade- levá-la confortável à porta da carruagem que a
vai transportar.
No momento da despedida – o que nos custa aos dois esse momento!
– olhamo-nos como patetas para a ranhura de um buraco negro,
atafulhados de saudades mútuas.
Voltamos a casa na mansa espera da volta do correio, aguardando a
resposta que às vezes não tem. Ninguém escreve sem a inconfessada esperança de
uma resposta.
Quem tem ainda a coragem de escrever uma carta, é merecedor do
recado.
Passam-se os dias nas suas coisas de dias,e nós nas coisas
nossas, e por aí andamos até que quase esquecidos, ou com a angústia doseada, nos
bate à porta o carteiro, apressado como todos os carteiros, mas grandes amantes de
todas as cartas em geral.
Deposita-nos em mão uma recheada de uma missiva, afogueada,
vinda de um périplo sabe-se lá de onde.
Se não volta a casa, é mau sinal.
Que grande excitação: de novidades, de aventuras, mesmo de
respostas óbvias às coisas simples e banais como as perguntas ingenuas que
sempre se fazem nas cartas. Tipo “como vai a vida?”
Fechada a porta de casa, as mãos desajeitadas e quase brutas
violam o envelope, a abrir caminho aos olhos ávidos dos segredos por ler.
Ofegante, despímo-la com nas febres de um sexo carnal,
irresistível e muito físico, no entanto mental, o mais sensual ou brutal dos
actos de amor.
E lemos. E relemos, com o sabor a pouco do que ela relata,
imaginando nas entrelinhas e nas pausas, querendo mais palavras a fazerem
histórias que nos embalem, e sosseguem na inquietude de se querer mais.
Uma carta é um prazer que não se esgota, múltipla de novas
leituras e deslumbramentos inauditos.
Se escrevêssemos cartas, o mundo andaria mais apaziguado, porque
enquanto esperamos pela possibilidade de darmos uma resposta, não somos capazes
de matar.
E aturdidos na responsabilidade de uma resposta urgente nesse
tal apeadeiro onde estamos sentados, não temos sequer tempo para apostasias.
Confesso publicamente de como gostaria escrever assim. Todavia, não sei, nem nunca saberei.
ResponderEliminarMuito belo. Um texto para reler. É isso mesmo... tal e qual sentimos ao escrever e receber uma carta!
ResponderEliminarPorque não escrever cartas? O que nos impede? Os outros não escrevem? Escrevo eu!
Talvez um dia se dê mais trabalho aos carteiros de quem (já ) não sabemos o nome...
É começar... esse prazer de escrever e receber! Porque temos que ir na corrente do sms ou do email ou do facebook?
«I'm the captain of my soul»...