quarta-feira, 4 de março de 2020


Comerciantes da morte...


O homem só tinha 60 anos, vivia sozinho e deixou de aparecer nos locais habituais, o que levou alguns amigos, estranhando a ausência, a procurá-lo em casa, onde o encontraram já morto; uma cangalheira local, sabendo do acontecido, apressou-se a tomar conta do defunto, pedindo a um médico a certidão de óbito e levando de casa, contra todas as regras, o cadáver para uma gaveta na morgue, sem dar cavaco à família, apesar de haver na região um irmão.

Só depois contactou uma irmã que vive nos Estados Unidos para lhe dar a notícia e dizer que as despesas orçavam em 3 mil euros; e só quando esta senhora ligou  para o outro irmão é que ele soube da morte do familiar, vindo a descobrir as precipitadas irregularidades cometidas pela cangalheira apressada que, acabando por perder o negócio, pois o irmão contratou outra funerária, desabafou o descontentamento dizendo que fez o melhor, que o morto era um indigente – mas exigia 3 mil euros para o enterrar! -  e que tudo estava bem se o irmão não tivesse aparecido para mudar tudo.

São muito conhecidos, porque já deram escândalo público, os procedimentos pouco éticos de algumas agências funerárias, até com informadores nos hospitais, que lhes vão dando conhecimento de quem morre e precipita os comerciantes da morte para casa dos familiares, sem que estes tivessem ainda informação oficial de que o ente querido falecera.

Ocorre-me o “sermão aos peixes”:  “...Muito maior açougue é o de cá. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças  e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e saír sem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer.

Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedeçá-lo e a comê-lo.Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores, come-o a mulher, que de má vontade lhe dá para mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra”.


Amândio G. Martins



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