sexta-feira, 20 de março de 2020


Dos sobressaltos da existência...


“Apoderou-se de mim um verdadeiro pânico. Já não sabia aonde ia. Corri pelas docas fora, meti pelas ruas desertas do bairro: as casas viam-me fugir com os seus olhos sem brilho. Repetia para mim mesmo com angústia: para onde é que hei-de ir? Tudo pode acontecer. De vez em quando, com o coração a bater, dava bruscamente meia volta: que se passava nas minhas costas? Talvez a coisa começasse por trás de mim, e, quando me voltasse, fosse já tarde. Enquanto pudesse fixar os objectos, nada se passaria: olhava todos os que podia: pedras do chão, casas, candeeiros; os meus olhos iam rapidamente de uns para os outros para os surpreender e os deter no meio da sua metamorfose.

Não estavam com ar inteiramente natural, mas eu dizia com força, para comigo: é um candeeiro, é um marco fontanário, e tentava, pelo poder do meu olhar, reduzí-los ao seu aspecto quotidiano. Várias vezes encontrei bares no meu caminho. Parava, hesitava diante das suas cortinas de tule cor-de-rosa: talvez essas salas bem calafetadas tivessem sido poupadas, talvez contivessem ainda uma parcela do mundo de ontem, isolada, esquecida. Mas era preciso empurrar a porta, entrar. Não me atrevia; e continuava a corrida. As portas das casas, sobretudo, metiam-me medo. Receava que se abrissem sozinhas. Acabei por andar pelo meio da rua.

Desemboquei bruscamente no cais das docas do Norte. Barcos de pesca, pequenos iates. Pisei uma argola incrustada na pedra. Ali, longe das casas, longe das portas, ia conhecer um instante de trégua. Na água, calma e ponteada de grãos pretos, boiava uma rolha. “E debaixo de água? Não pensaste no que pode estar debaixo de água?”

Nota – Transcrito do livro anexo.


Amândio G. Martins

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