Dos sobressaltos da existência...
“Apoderou-se de mim um verdadeiro pânico. Já não sabia aonde
ia. Corri pelas docas fora, meti pelas ruas desertas do bairro: as casas
viam-me fugir com os seus olhos sem brilho. Repetia para mim mesmo com angústia:
para onde é que hei-de ir? Tudo pode acontecer. De vez em quando, com o coração
a bater, dava bruscamente meia volta: que se passava nas minhas costas? Talvez
a coisa começasse por trás de mim, e, quando me voltasse, fosse já tarde. Enquanto
pudesse fixar os objectos, nada se passaria: olhava todos os que podia: pedras
do chão, casas, candeeiros; os meus olhos iam rapidamente de uns para os outros
para os surpreender e os deter no meio da sua metamorfose.
Não estavam com ar inteiramente natural, mas eu dizia com
força, para comigo: é um candeeiro, é um marco fontanário, e tentava, pelo
poder do meu olhar, reduzí-los ao seu aspecto quotidiano. Várias vezes
encontrei bares no meu caminho. Parava, hesitava diante das suas cortinas de
tule cor-de-rosa: talvez essas salas bem calafetadas tivessem sido poupadas,
talvez contivessem ainda uma parcela do mundo de ontem, isolada, esquecida. Mas
era preciso empurrar a porta, entrar. Não me atrevia; e continuava a corrida. As
portas das casas, sobretudo, metiam-me medo. Receava que se abrissem sozinhas.
Acabei por andar pelo meio da rua.
Desemboquei bruscamente no cais das docas do Norte. Barcos
de pesca, pequenos iates. Pisei uma argola incrustada na pedra. Ali, longe das
casas, longe das portas, ia conhecer um instante de trégua. Na água, calma e
ponteada de grãos pretos, boiava uma rolha. “E debaixo de água? Não pensaste no
que pode estar debaixo de água?”
Nota – Transcrito do livro anexo.
Amândio G. Martins
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