sábado, 28 de março de 2020


Um grande artista da palavra...


“...O infortúnio abastarda os espíritos, desalenta-os, e de todo os transfigura. António de Azevedo vergava debaixo da dependência, sem maldizê-la. Sentia-se alquebrado por sua mesma inércia, e esmagado pelo quase opróbrio de sua inutilidade. O futuro estava-lhe fechado, futuro para onde o arremessavam esperanças, que todas vira morrer, durante aquele triste viver de súplicas e repulsões à porta de ministros, de magnates, de influentes, homens que vestem o arnês do egoísmo, logo que, no dizer do sr. Alexandre Herculano, “se recostam nos sofás para onde se atiraram de cima do tamborete de couro ou da cadeira de pinho”.

Sentia-se o moço brutificado pela desgraça: tem ela de seu o fatal condão de deslapidar o brilho das ideias, enredando-as, escurecendo-as, falsificando-as; há uma como névoa que empana os objectos ou os desfigura; o infeliz vê sempre errado; ora crê e confia-se em tudo que ao comum dos homens é desprezível; ora esquiva-se a tomar pelos caminhos direitos do bem-estar, que eventualmente se lhe ofereçem.

Pode ser que uma linguagem enérgica lhe valesse uma transformação de vida; mas o susto, o quase pavor com que fala aos grandes, e a humildade lagrimosa com que intenta comovê-los, é ainda um sestro mau da sua desgraça. E em tudo assim, em tudo. Até no amor, que devia estar forro das cadeias com que a desfortuna peia e trava as demais faculdades. É ao pé da mulher amada, amada sem confiança nem expansão, é aí que mais a olhos observadores se manifesta o infeliz”.


Transcrito do livro anexo por
Amândio G. Martins

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