quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Crónicas deliciosas

Certa tarde, em Luanda, abri a porta de um elevador e descobri lá dentro um velho estendido num colchão de espuma. Vestia apenas umas bermudas e lia o jornal. Além do colchão havia também uma mesa de cabeceira e diversos caixotes. As paredes estavam cobertas por fotografias de mulheres nuas. Distingui ainda uma imagem de Nossa Senhora, numa moldura vermelha, iluminando com a luz dos seus olhos doces um céu de tempestade. Recuei estarrecido:

“Perdão, mas isto não é um elevador?”. O homem desculpou-se, humuilde:
-Foi elevador sim, meu pai, agora é habitação.
Não existe estilo sem repetição nem estilista sem obsessão. Jorge Luís Borges encheu os seus livros de tigres, labirintos e filosofia. Eça de Queirós, de ironia e cepticismo; Emingway, de bravura; Jorge Amado, de mulatas (a melhor das obsessões). Eu, mais modestamente, colecciono histórias com elevadores.

Por exemplo:
Num terrível dia de verão, em Lisboa, entrei num elevador tão cheio que ninguém se conseguia mexer. Apertados uns contra os outros, numa intimidade de amantes, tentávamos disfarçar a raiva que crescia a cada andar, Íamos todos muito hirtos, uns de olhos postos no tecto, outros estudando atentamente o chão. Subitamente, sem qualquer ruído, o elevador morreu. Durante alguns segundos ninguém disse nada.

Silêncio, calor. E nós ali, à espera, imobilizados entre dois andares. “Isto está sempre a acontecer”, disse um sujeito enorme. “Moro no décimo primeiro andar e pelo menos duas vezes por semana fico fechado aqui dentro”. Lembro-me de ter pensado que os crimes aumentam nos dias quentes. É um fenómeno comprovado pela ciência. Sentia-me rodeado por assassinos. Eu próprio, se tivesse uma arma na mão, teria sido capaz de matar aquela gente toda.

-Roubaram-me a carteira!
O homenzinho estava mesmo ao meu lado direito. Era um tipo magro, pequenino, óculos grossos, bigode tímido. “O que o senhor quer dizer”, perguntei, é que alguém aqui dentro lhe roubou a carteira”?”. O gigante do décimo primeiro andar acrescentou: “Um de nós, portanto”. A voz dele escureceu um pouco mais: “Talvez o senhor se tenha esquecido dela em casa. Não terá sido isso?”.
-Pois é – concordou o pobre homem – foi isso com certeza.

Nota – Do livro de José Eduardo Agualusa, “A substância do Amor”.

Amândio G. Martins



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