segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Meu herói de infância...

Ti João Pontinha era um solteirão que vivia com uma irmã na mesma situação, na casa que herdaram dos pais, e ambos tinham bom feitio e paciência para lidar com as diabruras da miudagem, o que levava a que nunca faltasse pequenada para lhes testar a paciência sem limites.

Alguns dos miudos eram filhos e netos de familiares seus, mas eu e meus irmão éramos apenas vizinhos recentes, acarinhados também com a mesma simpatia dedicada aos que eram mais da família.

Na boa vizinhança e entreajuda, as várias famílias como que constituíam uma só, sendo o ti João o ídolo escolhido de todos, por estar sempre disponível; com o andar do tempo e o nosso crescimento, todos fomos percebendo, por conversas ouvidas a outros adultos, que havia no passado do ti João uma história misteriosa, que se prendia com a sua não comparência  à partida do Corpo Expedicionário Português para França, aonde iria combater na 1ª Grande Guerra.

Tendo passado os anos da guerra escondido das surtidas da guarda, esta nunca desistiu de tentar  deitar-lhe a mão, tarefa jamais concretizada, tal a protecção dada ao “fugitivo” por familiares e amigos, que nunca o traíram, mesmo que outros conterrâneos não tivessem acordado a tempo e fossem mesmo deixar a pele e o osso nos lamaçais de La Lyz.

E conforme fui crescendo e conhecendo melhor a situação, o estado em que tinham sido recambiados para casa alguns sobreviventes, estropiados no corpo e na alma, mesmo nada entendendo do contexto em que tinham sido forçados a ir combater no estrangeiro, já admirava a ousadia do ti João, do qual nunca ouvimos uma palavra sobre tal assunto.

Com o rolar do tempo e os conhecimentos que fui adquirindo, cimentei por ele um redobrado respeito, por ter ousado recusar ser carne para canhões alemães, numa guerra em que Portugal entrou na pretensa defesa das colónias, levando políticos que se julgam poder dispor do povo como bem entendem a mandar para a morte certa milhares de camponeses sem preparação militar bastante e com equipamento miserável, para combater um exército altamente preparado e ricamente equipado.

E também percebi por que o limiano Norton de Matos, “ministro da guerra” desse tempo e que já tinha sido alto “capataz” nas colónias, um dos grandes responsáveis pela desgraça a que expôs tantos compatriotas, nunca foi querido pelas gentes simples do Concelho...

Amândio G. Martins



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