segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

O existir do medo e o medo de existir

Mais um ano de medos mais ou menos objectivos. Medo das prestações (da casa, do carro, do plasma, das férias); medo do fim do mês, medo da fome, medo do desemprego, medo pelo trabalho (que, na precariedade, se pode perder), medo do trabalho (de não se aguentar a sobreintensificação e a exaustão), medo no trabalho (onde pode surgir a doença e até a morte ou onde, pela precariedade e o desemprego “cá fora”, pode haver quem nos “rentabilize” pelo medo); medo da reforma (pela solidão e ostracismo); medo na reforma (pela carência económica e de apoios sociais); medo pela reforma (que, na velhice, pode já não existir). Enfim, existe medo.
Contra estes e outros medos que existem, não falta por aí quem nos sugira “paciência” e “resiliência” e, assim, insidiosamente, poder insinuar-se-nos a resignação, a anomia, o conformismo.
E, daí, subrepticiamente, o medo de contestar, o medo de se manifestar, o medo de ser sindicalizado, o medo de fazer greve, e, até, quiçá, o medo de votar (e ser enganado). Em síntese, o medo de exercer os direitos, o medo da cidadania, o medo da democracia e, assim, o medo de falar, o medo de pensar, e, até, mais do que os medos objectivos, o “medo sem objecto”, o medo incorporado”, o medo de viver, o medo de ser, o “medo de existir”.
“O duplo-esmagamento está em curso, apaga-se o medo com o medo, todos os medos antigos que o 25 de Abril não exorcizou desaparecem quando neles se enxerta o medo da exclusão, tanto mais incompreensível quando ele surge numa sociedade livre, democrática, que se edificou contra o antigo regime autoritário.” (José Gil - Portugal, Hoje. O Medo de Existir).
Alexandre O’Neill (O Poema Pouco Original do Medo) avisa-nos: “(...) Ah o medo vai ter tudo / tudo / (Penso no que o medo vai ter / e tenho medo / que é justamente / o que o medo quer) / O medo vai ter tudo / quase tudo / e cada um por seu caminho / havemos de chegar / quase todos / a ratos / Sim / a ratos”.
Sugestão de Umberto Eco (O Nome da Rosa): “É sempre melhor que quem nos incute medo tenha mais medo do que nós". É isso! Meter medo ao medo.
Neste Novo Ano, perante o “medo de existir”, a solução é óbvia: existir. Existir mesmo. Contra o(s) medo(s) que existe(m).

João Fraga de Oliveira

(Público, 3/1/2015 – página 41)

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