(Poesia de
David Mourão-Ferreira)
DO TEMPO AO
CORAÇÃO
Do cântico de
amor gerado na Suméria
Ao grande “strip-tease”a
que se entrega Europa
Da nuca de
Afrodite aos artelhos de Artémis
Da lascívia
da cabra à lascívia da cobra
Do sabor a
limão que há também no remorso
Ao riso da
romã que vem no solstício
Sobrevoando à
noite o século dezoito
Interrogando a
cor da cada suicídio
De perto de
Heidelberga ao porto de Antuérpia
Da sagração
de Sade à sonoterapia
De uma rosa a
uma cruz De uma cruz a uma ténia
Das rugas de
um pescoço em redor dos quarenta
ao braço que
tão liso aparenta catorze
De uma igreja
barroca a um remo uma rena
Da âncora ao
farol no alto de uma torre
Da mais velha
invenção à mais nova tortura
Do tempo ao
coração Do Boeing à quadriga
De não te
pedir muito apenas que não fujas
a sentir-te
de mais no céu da minha vida
De um jardim
de Munique onde nada se passa
como o Nymphenburg
onde tudo é possível
à brisa que
segrega uma espécie de Arcádia
à onda que
traslada um verso de Vergílio
De milhões e
milhões que rebentam com fome
ao dom do
caviar para abrir o apetite
Do canto
gregoriano à música electrónica
Dos berros da
oração ao silêncio de um grito
De tanto a
muito mais De tudo a quase nada
Só não sei
que tecido oscila entre os extremos
Se apenas o
amor Se o vulto da amada
Se
trevas Se uma luz Se o tempo em que vivemos
RETRATO DE
RAPARIGA
Muito
hirta de pé no patamar do sono
Contornando
sem pressa a curva de uma artéria
Por mais
ocasional que fosse o nosso encontro
dava-me a
entender que estava à minha espera
Com um livro
na mão com um lenço ao pescoço
uma expressão
cansada a palidez inquieta
de quem
andasse ao vento ou trouxesse no rosto
em vez de pó
de arroz um pó de biblioteca
surgia de
repente onde sempre estivera
em
Zurique em Paris em Liège
em Colónia
Por único
endereço uma carreira aérea
Mas não sei
se era louca ou apenas mitómana
Onde quer que
eu a visse uma coisa era certa
Numa rua num bar
num museu numa doca
dava-me a
entender que estava à minha espera
dava-me a
entender que se chamava Europa
Nota – Estes poemas
foram publicados em 1966, numa edição com o título
DO TEMPO AO
CORAÇÃO, colecção Poesia e Verdade, de Guimarães Editores.
Transcritos na
forma em que se encontram no opúsculo.
Amândio G.
Martins
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