terça-feira, 28 de julho de 2015

Uma verdadeira mãe

     
A pobre contou que entrara a servir aquela senhora em 1914, pouco antes da guerra. Tinha chegado da província, uma criança, vinha com os olhinhos tapados. A senhora ofereceu-lhe dois e quinhentos por mês: não era mau para começar, mais de meia libra por mês, naquele tempo! Ficou. A senhora disse-lhe assim: “Quando precisares de alguma coisa, quem ta compra sou eu. Nas lojas roubam-te. E de que precisas tu? Eu dou-te estas meias, dou-te esta saia, está usada, mas tu mesma a podes arranjar ao serão, não tendo mais que fazer. Fica nova! As modistas são umas ladras.” Dava-lhe os sapatos gastos, as camisas a desfazer-se, os trapos inúteis. “O teu ordenado vai para o banco. Quando saíres da MINHA casa tens um pé de meia!”
Veio a guerra, o descalabro da moeda, o delírio de negócios e grandezas, o dantes manga d`alpaca passou dos sessenta escudos por mês a especulador de marca maior – hoje é milionário – e no dia em que a moça, com mais pés- de- galinha do que pé -de –meia, farta de escravidão, de insultos, de fome e trabalho, de noitadas e madrugadas, de autoridade e abstinência, se despediu a medo e pediu contas, com o trouxa dos trapos de baixo do braço, a respeitável e bondosíssima senhora, que o é, apresentou-lhe o livro das economias e finanças: Estávamos em 1928, exactamente catorze anos, ou seja, cento e sessenta e oito meses de serviços a escudos dois e quinhentos-soma: Esc. 420$00-papel. “Toma lá o teu dinheiro, minha ingrata! Fui uma verdadeira mãe para ti, e é assim que tu mo agradeces!”

Texto de José Rodrigues Miguéis, com o título «Os de cima e os de baixo» da obra É Proibido Apontar transcrito por
Amândio G. Martins

3 comentários:

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