O abraço dos polvos
*Cristiane
Lisita
“Debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia
tão santa (...) o dito polvo é o maior traidor do mar”, asseverava o Padre
Vieira antes de voltar para Portugal, em 1654, aludindo-se ao sermão de Santo
Antônio aos peixes, um apólogo aos homens de seu tempo. Entre criaturas grandes
e pequenas, nesse universo habitado, são os cefalópodes os fugidios da luz.
Esses moluscos sabem defender-se em suas camuflagens, liberando uma golfada
de tinta, cujo odor advindo repele os inimigos. Alguns se valem, ainda, da simulação
tática dos tentáculos que, abandonados, espairecem o atacante. Mormente,
escondem-se em baixa profundidade entre seixos ou grutas, permanecendo sozinhos,
exceto na época de reprodução.
O sistema nervoso aprende novas condutas,
memoriza outros trajetos. É o invertebrado mais inteligente dessas águas. Não
bastasse o cérebro denso, a natureza igualmente lhes deu três corações para
nenhum aproveitar. Tais quais os polvos com seus corpos moles, movimentos
disformes na flexibilidade dos ‘braços’, e com jogos de ‘cintura’, alguns
indivíduos cobiçam abocanhar suas presas. Enganadoramente surpreendentes em
suas nuances de cores a seduzir.
Os polvos se regozijam com
os mais humildes, os fracos, os incapazes de discernir a sua real essência fátua,
degradada, nesse oceano cujas virtudes são massacradas perante a ambição
desmedida pelo poder, pela constância das impunidades e falcatruas, cujas
verdades demudam-se em destorcidos e relativos fatos, cujas existências se
tornam vexadas, sob um sórdido olhar à espreita. Um pélago onde, às vezes, a
vida clama para ser possível de ser vivida. Quando se entende que é irrefutável
evadir do abraço dos polvos.
*Cristiane Lisita é
jornalista, advogada e escritora. Pós-Phd.
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