A propósito da fraca prestação da
equipe portuguesa no Mundial de Futebol, muito se tem conjecturado a respeito
da suposta débil condição física dos jogadores, levando-se muitas vezes
profissionais e leigos a (re)pensarem na força ou fraqueza dos actuais modelos
de reabilitação (e prevenção) desportiva. Na verdade, e como veremos, subsiste
um curto-circuito entre paradigmas de trabalho fisioterapêutico, facto e
reflexão não atida pela maioria dos profissionais, quase todos convencidos de
que a fraca condição física dos atletas advém sobretudo da igualmente fraca
preparação ou treino.
Subjacente ao típico modelo
desportivo, paradigma subsidiário de um modelo económico-social moderno,
liberal e meritocrático que valoriza acima de tudo a
"performatividade" (portanto, o resultado), está a noção de que um
número elevado de lesões, como se verificou com a equipe nacional no Mundial,
seria a consequência natural de um treino insuficiente e/ou de estratégias de
prevenção da lesão igualmente escassas. Não vou dizer que esta noção e o seu
paradigma estão de todo incorrectos, mas, ainda assim, o que representa a sua
fraqueza é precisamente aquilo que permite, mas não deveria permitir, a
existência do próprio desporto de alta competição. É que, na esmagadora maioria
dos casos, em desporto, o protótipo fisioterapêutico utilizado é menos o da
"Saúde" do que o do "Rendimento" e da
"Performance", e é isso que, de algum modo, não obstante o seu não
reconhecimento por parte de muitos terapeutas (e igualmente médicos), constitui
a grande fraqueza do paradigma corrente.
A verdade é que são inúmeros os
casos de lesões que, em circunstâncias normais de "Saúde",
implicariam um processo prolongado de reabilitação, associado ao igualmente
crucial descanso das actividades competitivas (e dos seus esforços
desajustados). Contudo, no contexto competitivo, a prioridade é dada à própria
prestação do atleta; e, no contexto desse paradigma, o fisioterapeuta deixa de
ser um profissional de saúde para passar a ser o agente que permitirá a
utilização contínua e urgente da máquina que entendemos como
"jogador", independentemente das consequências que isto possa trazer
a longo prazo para o atleta. Está em jogo o resultado, a
"performance", o ganho a curto termo, e tudo deve ser feito de modo a
disfarçar sintomas ou a permitir a função que serão vitais ao ganho, assim como
à subsistência da máquina desportiva e de todas as outras
"indústrias" com esta relacionada.
Assim sendo, perante a dor,
aplica-se o método anti-sintomático que permitirá disfarçar os sintomas que são
o aviso do desgaste; perante, por exemplo, um entorse, aplica-se a ligadura
funcional que permitirá utilizar determinados padrões de movimento, mas de um
modo vicioso e, portanto, com inequívocas consequências para o equilíbrio
muscular; e perante a estrutura aparentemente fraca (quando na realidade ela se
apresenta extraordinariamente tónica e tensa... daí a fraqueza e disfunção),
submete-se o membro a trabalho de ginásio, ao treino de força que levará a
estrutura a exaurir-se na patologia, na transformação tecidual viciosa.
Ora, muitos destes atletas
trabalhados até à exaustão, precisavam - isso sim - de ser incluídos num
processo de reabilitação que visasse cuidados pensados num tempo longo e
inteligentemente definido. E isso poderia (e deveria) incluir mecanismos de
trabalho baseados igualmente no alongamento e relaxamento. É que, na realidade,
nem toda a Fisioterapia é baseada nos clássicos modelos desportivos e de
actividade física, muito centrados na força e na resistência. Por exemplo, o
modelo de Reeducação Postural, do qual sou proponente, utilizador e
representante, visa no trabalho estrutural e de alongamento mio-fascial o vero
caminho para a real e holística Saúde humana. Não obstante, a determinada
altura, é impossível abraçar estes modelos de Globalidade sem repensar o
conjunto dos modelos desportivos e fisioterapêuticos, sem ver o atleta menos
como máquina funcional e performativa e mais como elemento estrutural palco de
uma dialéctica morfológica que explica e ajuda a prever as futuras/presentes
lesões (porque a Estrutura/Postura, o "design" do atleta, poderá
ajudar a compreender de outro modo a sua própria predisposição para
determinadas lesões). Mas aí já o fisioterapeuta se depara com a quase
impossibilidade ética de se trabalhar no campo do desporto. É que, dada a
incomensurabilidade de paradigmas, a quase impossibilidade de aplicar um modelo
global a um Sistema que quer a celeridade a todo o custo, é comum o terapeuta
moralmente comprometido abandonar o trabalho de uma fisioterapia que não está
pensada para a Saúde... ou pelo menos assim deveria ser!... pois que a
esmagadora maioria dos fisioterapeutas não se deixa afectar por este tipo de
consciência... falta de moralidade, contas para pagar, a ambição da fama a todo
o custo, ou a simples inconsciência, entre tantas outras razões que nem merece
a pena referir.
Luís Coelho, fisioterapeuta e
escritor, www.reeducacaopostural.blogspot.com
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