Uma pessoa muito idosa deve sair à rua?
Na sua juventude, Norbert Elias
(1897-1990), notável sociólogo conhecido sobretudo pelo estudo dos “processos
civilizacionais”, foi assistir, em Cambridge, à conferência de um médico de
nomeada. Viu então entrar um senhor muito idoso que arrastava os pés. A sua
juventude saudável surpreendeu-se e como que se irritou: “Porque é que aquele
homem não conseguia andar como as outras pessoas «normais»?”. A surpresa deu
rapidamente lugar à indiferença: o senhor arrastava os pés porque era demasiado
idoso.
Muito anos depois, tendo sido convidado por uma Universidade
alemã, foi jantar a casa de um colega muito mais novo. Enquanto esperavam que a
refeição fosse servida, o jovem anfitrião fê-lo (maldosamente?) sentar-se numa
cadeira muito baixa, de que felizmente Elias conseguiu levantar-se sem
problemas. A sua agilidade foi elogiado: há tempos, um professor também de
idade estivera sentado naquela mesma cadeira baixa antes de a refeição ser
servida, mas não conseguira levantar-se sozinho. E o colega mais novo não
conseguia controlar o riso, como se estivesse a relatar uma cena cómica.
Norbert Elias contou estes episódios numa conferência que
fez aquando de um congresso médico em 1983. Do seu ponto de vista, é a falta de
identificação e empatia que os mais novos e saudáveis manifestam em relação
àqueles que envelhecem e morrem que contribui para que surja nestes últimos uma
sensação real de isolamento e de maior vulnerabilidade. No fundo, afirma, os
não-idosos e saudáveis dificilmente conseguem conceber a ideia de que eles
próprios irão envelhecer e morrer. Daí que um jovem jornalista lhe tenha
perguntado, a propósito do seu livro sobre a solidão dos que morrem, porque é
que escolhera um assunto tão “mórbido”.
Enquanto as sociedades conservam ainda muitos traços
comunitários, é difícil envelhecer e morrer sozinho porque um forte sentimento
de “privacidade” ainda não se instalou. Nem sempre estas características das
sociedades se tornam benéficas, mas são um facto. Assim, acerca da sociedade
medieval, escreve Elias noutro texto que, nela, de um modo geral, “a vida era
mais breve, os perigos menos controláveis, a morte frequentemente mais
dolorosa, o sentimento de culpabilidade e o medo do castigo menos dissimulados
do que hoje, mas – quer isso fosse um bem ou um mal – a participação dos
outros na morte do indivíduo era muito mais normal”, pois tudo era também
muito mais “público”, mesmo para as crianças, que não eram afastadas dos
moribundos e dos funerais. Pelo contrário, a nossa época revelaria algo inédito
na história da humanidade, ao relegar os mortos “para trás dos bastidores, para
fora dos seres vivos, de modo tão higiénico”. Mais: “nunca antes os cadáveres
foram expedidos da câmara mortuária ao túmulo de modo tão inodoro nem com uma
tal perfeição técnica”.
Concretamente quanto ao envelhecimento, o estado lamentável
em que geralmente funcionam os lares, sobretudo para quem tem pouco dinheiro,
faz com que possamos aplicar-lhes a mesma expressão usada por Elias: “desertos
de solidão”. Isto, para já não falarmos da falta de apoio domiciliário a
pessoas de idade.
No fundo, queremos esquecer a finitude e a vulnerabilidade,
mas esse esquecimento tem repercussões no modo como lidamos com os mais
desprotegidos, como é o caso das pessoas idosas, dos que estão para morrer ou
dos doentes. É também esse esquecimento que faz, por ex., com que nos locais de
estacionamento os lugares reservados aos deficientes continuem basicamente
desertos, como denunciou Ana Vicente em PÚBLICO do ano passado (1.10).
Há pouco, alguém me dizia de uma pessoa concreta já muito
idosa que não devia sair à rua, que ficava mal. A meu ver, o que fica mal é
retirarmos estes temas da agenda da cidadania política, ética e intelectual e
não sabermos estar à altura de uma solidariedade concreta quando as
circunstâncias o exigem.
Laura Ferreira dos Santos
Docente Aposentada da Universidade do Minho
(laura.laura@mail.telepac.pt)
Gostei muito da acuidade e relevância do seu texto. Obrigado
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