quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

HAVERÁ POR AÍ UM MÉDICO?



Passei uma noite na urgência de um hospital, não interessa o nome e o local. Eu encostado à maca, com um velho, o meu pai.

Fiquei com a sensação que íamos assistir a um confronto doente – médico: de um lado da sala ampla as macas doentes alinhadas, do outro lado nove mesas numeradas. Podiam ser balcões de finanças, ou Segurança social, eram balcões de atendimento de doenças.

Nas primeiras quatro horas, um terço desses balcões ocupados por jovens médicos, tímidos, assustados, silenciosos, serviram-lhes de refúgio e protecção, escondidos por trás dos ecrãs dos computadores, teclando muito, disfarçando ocupação, não chamaram ninguém, não arriscaram.

Nos outros dois terços (também preenchidos por jovens, estes provavelmente mais desinibidos),cada utente estacionava na expectativa de uma decisão favorável, pelo menos sair do impasse, quando o médico que os atendia chegasse a um acordo com os colegas do lado quanto ao diagnóstico, pedindo-lhes apoio, a eles também desapoiados, sobre a decisão terapêutica, que por esse caminho só chegará ao início da manhã.

Em quatro horas como olheiro ao lado de uma maca num banco de urgência, vislumbrei uma médica (presumo que a graduada porque era a mais velha, confiante e fugidia) que se fez à cena esvoaçante, como diva, e saiu de depressa, perguntando aos miúdos se estava tudo bem.
Postou em voz suficientemente audível uma máxima muito reconfortante para um utente numa situação de emergência: “Oh Niquinhas, já sabes, não te acanhes. Se tens dúvidas pergunta aos outros, não fiques calada”.

A Niquinhas tocou-me a mim! Tive pena dela, mas quero lá saber da pena, quando as preocupações são com os meus!

Durante essa noite, uma ridícula poça de sangue da senhora do lado que tirou o cateter, jazeu durante duas horas no chão pouco imaculado da sala. Foi alvo de atenções dos auxiliares, das enfermeiras, dos médicos, que de quando em vez, olhavam e diziam: “tem que vir alguém limpar isto”. Ninguém o fez, estavam todos demasiado atarantados para saberem o que andavam a fazer naquele sítio.

Haverá por aí um médico?

(Público, 23.1.2016)


3 comentários:

  1. Até para fazer crítica social se pode empregar a arte. O Luís tem esse dom. Contudo, essa condição que só pode vir de quem vê para além do tapume, nem sempre é compreendida. Um abraço e o desejo sincero das melhores do "velho" seu pai.

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  2. Na fronteira entre a vida e a morte

    Aviso: tenho andado com este texto já há alguns anos, mas vou dá-lo a conhecer, pois já o vivi, aquando de um ‘leve’ AVC.
    Texto: tenho muito receio ao entrar na Urgência de um qualquer hospital. Parece que de imediato perco a minha própria identidade, para passar a fazer parte de uma massa anónima, com uma fita numerada e colorida no pulso, a caminho de um incerto destino que pode levar-nos, antes e depois de padecimentos mil, ao fim de um qualquer mortal, para, depois, se jazer em rasa campa até à consumação total do corpo e do esquecimento terreno daquilo que fomos.
    Várias e concretas visões do mundo hospitalar reduzem-me a níveis absurdamente frágeis. Tão frágeis e mais leves do que o peso de um simples fio de cabelo, deslocado do local de onde pertencia.
    A ligação à vida passa a ser uma tenebrosa incerteza, tão ténue que, de tão ténue, a morte pode ser a única solução final.
    Observando, enquanto não fui atendido, a este local da Urgência, chegam seres escangalhados, estropiados, com cores de dor, em fim de prazo temporal, alguns com problemas físicos provocados pelo percurso terreno, em demanda de que tudo de mau volte ao lugar do mundo saudável, o que, infelizmente, para muitos de nós não acontecerá jamais.
    E continuo a observar: a azáfama já é grande. Chegam ambulâncias e carros particulares, e táxis.
    Há um vozear ininteligível. Os bombeiros-maqueiros, os auxiliares de saúde, e enfermeiros prendem papeladas que deixam caídas sobre os doentes deitados nas macas.
    E eu, cada vez me sinto mais acabrunhado e pálido, contrastando com a cor berrante dos casacões e dos bonés dos bombeiros – vermelha.
    Vejo dependentes físicos mal vestidos, de chinelos, de pijama, de aspecto já cadavérico. Uns amparados ou em cadeiras de rodas.
    E vou verificando que já não consigo escrever o número que tinha na pulseira-fita que me colocaram na triagem, e que a minha fala já não é a mesma, e que pendo mais para um lado, batendo com o ombro na parede. Sinto-me zonzo, muitíssimo pior do que um hipotético doido no meio de uma ponte.
    E todos nós tentamos mitigar a dor física e a dor da incerteza na procura de saúde que nos quer abandonar.
    E tudo isto, por vezes, na vã tentativa de se evitar a morte.


    José Amaral

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  3. Publicado hoje, dia 23.01.2016, no jornal Público. Parabéns ao Luís e ao jornal que sempre nos vai apoiando,dando espaço, para que gritos de alma, como este, ultrapassem a roda dos amigos.

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