quarta-feira, 23 de setembro de 2015

NOTÁVEL

                                  VIDA NOBRE E VIDA VULGAR
Para já somos aquilo que o nosso mundo nos convida a ser, e as feições fundamentais da nossa alma são impressas nela pelo perfil do meio circundante como que por um molde. Naturalmente: viver não é mais do que lidar com o mundo. O cariz geral que ele nos apresentar será o cariz geral da nossa vida. Por isso insisto tanto em fazer ver que o mundo onde as massas actuais nasceram mostrava uma fisionomia radicalmente nova na história.
Enquanto no passado viver significava para o homem médio encontrar em seu redor dificuldades, perigos, escassez, limitações de destino e dependência, o mundo novo aparece como âmbito de possibilidades praticamente ilimitadas, seguro, onde não se depende de ninguém. Em torno desta impressão primária e permanente vai-se formar cada alma contemporânea, como em torno da oposta se formaram as antigas.
Porque esta impressão fundamental converte-se em voz interior que murmura sem cessar algo assim como que palavras no mais profundo da pessoa e lhe insinua tenazmente uma definição da vida que é, simultaneamente, um imperativo. E, se a impressão tradicional dizia: “viver é sentir-se limitado e, por isso mesmo, ter de contar com o que nos limita”, a novíssima voz grita: “viver é não encontrar limitação alguma, portanto, abandonar-se tranquilamente a si mesmo. Praticamente nada é impossível, nada é perigoso e, em princípio, ninguém é superior a ninguém.”
Esta experiência básica modifica por completo a estrutura tradicional, perene, do homem-massa. Porque este sentiu-se  sempre constitutivamente referido a limitações materiais e a poderes sociais superiores. Era isto a vida, aos olhos dele. Quando lograva melhorar a sua situação, quando ascendia socialmente, atribuia-o ao acaso da sorte que lhe era nominativamente favorável. E quando não era isto, era um enorme esforço que ele sabia muito bem quanto lhe custara.          (…)
O   homem que analisamos habitua-se a não apelar de si mesmo a nenhuma instância fora dele. Está satisfeito tal como é. Ingenuamente, sem necessidade de ser vão, como a coisa mais natural do mundo, tende a afirmar e a dar como bom o que encontra em si: opiniões, apetites, preferências ou gostos.         (…)
Nunca o homem-massa teria apelado a nada fora de si se a circunstância não o tivesse obrigado a isso. Como agora a circunstância não o obriga, o eterno homem-massa, consequente com a sua índole, deixa de apelar e sente-se soberano da sua vida. Pelo contrário, o homem selecto ou excelente está constituído por uma necessidade íntima de apelar de si mesmo a uma norma para além dele, superior a ele, a cujo serviço se coloca livremente. É intelectualmente massa aquele que perante um problema qualquer se contenta com pensar apenas o que a sua cabeça dá; é egrégio aquele que despreza o que encontra sem prévio esforço e só aceita como digno dele o que é difícil de alcançar.
NOTA – Texto compilado da obra do pensador espanhol Ortega y Gasset , 1883-1955, “A Rebelião das Massas”.
Transcrito por Amândio G. Martins.




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