DISTÂNCIAS
Diz Vossa
Excelência que o seu rico sonho, enquanto andou por lá, foi vir morrer à terra,
comprar esta quinta, que pertenceu a seus pais, e acabar aqui os seus últimos
dias. Rico sonho, fidalgo, mas…a terra já não é a mesma. Quer-se dizer: a terra
é a mesma, o mesmo sol, as mesmas vinhas, lá está o Marão a espreitar, mas, a
alma da terra já não é a mesma. A alma, isto é, a gente. Mudou como se lhe
anoitecesse. Virou-se do avesso.
No tempo do
fidalgo, cada uma agradecia a Deus a sua sorte. Hoje, ninguém está contente com
a sua sorte. Daí se gereceu uma inquietação, um desespero, uma loucura,, que só
tem relego no vinho. Homens e mulheres afogam em briol o diabo que lhes entrou
no corpo.
No tempo do
fidalgo, toda a gente se respeitava entre si. Hoje, o respeito é um escárnio…
Há por aí cabeças brancas envergonhadas. Há filhos que erguem a mão para os
pais. Há dias, na freguesia de baixo, enterrou-se uma mulher que levava os
olhos negros de socos, dados pelo filho, a troco de uma letra, que a mãe não
quis assinar.
Vossa
Excelência quis comprar esta quinta, que pertenceu a seus pais. Teve sorte, que
fica arredia do povo. Daqui, desta varanda, vê Vossa Excelência o povo, mas não
vê o que se passa no povo. Mesmo assim, um dia o verá, ou adivinhará. Dê tempo
ao tempo.
Vossa
Excelência comprou esta quinta, que é uma boa peça. Tem água, tem vinha, tem
olival e tem mata. Mas, granjeá-la? Vossa Excelência vai ver o que é, hoje em
dia, o granjeio de uma propriedade. É uma camisa-de-onze-varas. É o cabo dos
trabalhos.
Diz Vossa
Excelência que dormiu numa esteira para ganhar os primeiros cinco reis e que
sempre cumpriu, como subalterno, a sua obrigação de subalterno. Foi empregado
até amealhar o preciso para comprar esta quinta. Hoje, é patrão… Mas, Vossa
Excelência verá que ninguém lhe reconhece esse direito. Aqui, na sua terra,
ninguém lho há-de reconhecer. Todos querem mandar, fazer o que quiserem.
Obedecer, cumprir, ser mandado – ninguém quer. O trabalhador perdeu o honrado
título de trabalhador, porque… não trabalha. Passa o dia a espreitar o caminho,
a espreitar o céu e a consultar o relógio. Volta, meia volta, pede vinho. Come
salgado para ter sede. Se lha não matam, no dia seguinte, procura outra casa. E
não falta quem o receba, porque faltam braços. Os mais valentes foram para as
minas e para as obras públicas. A lavoura ficou à mercê de quatro bêbedos…
Mas, que
desgraçados! Sujos, andrajosos, sem fio branco na cama nem mais tarecos do que a
caixa de pinho, cheia de mondongos. Quanto ganham, quanto vão entregar ao
taberneiro. Pois, se o poupassem, podiam viver limpos, que os jornais vão sendo
abonados. Mas, tanto luzem com muito como com pouco. São infelizes até esse
ponto.
A lavoira, no
tempo do fidalgo, foi uma coisa bonita. Com suas amarguras, mais dia, menos
dia, cantava. Hoje, só bebe! O enxertador exige, a seu lado, um garrafão de
vinho. O cavador finge que cava. Beber é que não finge. Bebe a rego cheio. O
fidalgo verá que lhe não chega a novidade para lhe sustentar o vício. O vício e
outras exigências…
Fez mal,
fidalgo, em vir morrer à sua terra. Bem sei que é a sua paixão. Tanto, que nem
se casou. O fidalgo, pelo que me disse, faz-me lembrar a bússola do mareante. O
Norte, para o fidalgo, foi a sua aldeia. Bem está, que tem aqui os seus pais
enterrados, passou aqui a infância, parte da mocidade. Aqui foi o seu reino.
Toda a gente lhe quis como quem era. Mas, Fidalgo, tudo isso passou… Aos olhos
de quem nos vir, tanto sou eu como Vossa Excelência. Não há distâncias. Só eu,
que sou velho, ainda as sei guardar.
NOTA – Este
texto foi compilado do livro “Montes Pintados”, de João de Araújo Correia.
Transcrito
por Amândio G. Martins
Eu nasci dentro do triângulo geográfico de João Araújo Correia, Miguel Torga e de Aquilino Ribeiro.
ResponderEliminarSomos um país rico de pensadores sérios e de possibilidades para todos, senhor Amaral. Não o degradassem os políticos desonestos e incapazes, meros serventuários daqueles que só vêem nele uma mina/fonte de pingues lucros rápidos e fáceis. Num quadro destes, as massas trocam, por pura ignorância, valores perenes pelo imadiatismo dos modismos: comprar uns óculos caros para colocar na cabeça, um pulóver para amarrar à cinta, smartphones, sapatilhas, tudo último "grito", é que as faz felizes, mesmo que, para satisfazer esse exibicionismo, fiquem por pagar contas urgentes. O pior é quando chega o refluxo das decisões erradas...A conversa/monólogo do aldeão com o conterrâneo regressado, respondendo ao apelo telúrico, passou-se há muitos anos,mas pode ser ouvida hoje em qualquer lugar, de homens da mesma têmpera. Mas quê, são "vox clamantis in deserto".
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