quarta-feira, 16 de setembro de 2015

O REGRESSO

                                               DISTÂNCIAS
Diz Vossa Excelência que o seu rico sonho, enquanto andou por lá, foi vir morrer à terra, comprar esta quinta, que pertenceu a seus pais, e acabar aqui os seus últimos dias. Rico sonho, fidalgo, mas…a terra já não é a mesma. Quer-se dizer: a terra é a mesma, o mesmo sol, as mesmas vinhas, lá está o Marão a espreitar, mas, a alma da terra já não é a mesma. A alma, isto é, a gente. Mudou como se lhe anoitecesse. Virou-se do avesso.
No tempo do fidalgo, cada uma agradecia a Deus a sua sorte. Hoje, ninguém está contente com a sua sorte. Daí se gereceu uma inquietação, um desespero, uma loucura,, que só tem relego no vinho. Homens e mulheres afogam em briol o diabo que lhes entrou no corpo.
No tempo do fidalgo, toda a gente se respeitava entre si. Hoje, o respeito é um escárnio… Há por aí cabeças brancas envergonhadas. Há filhos que erguem a mão para os pais. Há dias, na freguesia de baixo, enterrou-se uma mulher que levava os olhos negros de socos, dados pelo filho, a troco de uma letra, que a mãe não quis assinar.
Vossa Excelência quis comprar esta quinta, que pertenceu a seus pais. Teve sorte, que fica arredia do povo. Daqui, desta varanda, vê Vossa Excelência o povo, mas não vê o que se passa no povo. Mesmo assim, um dia o verá, ou adivinhará. Dê tempo ao tempo.
Vossa Excelência comprou esta quinta, que é uma boa peça. Tem água, tem vinha, tem olival e tem mata. Mas, granjeá-la? Vossa Excelência vai ver o que é, hoje em dia, o granjeio de uma propriedade. É uma camisa-de-onze-varas. É o cabo dos trabalhos.
Diz Vossa Excelência que dormiu numa esteira para ganhar os primeiros cinco reis e que sempre cumpriu, como subalterno, a sua obrigação de subalterno. Foi empregado até amealhar o preciso para comprar esta quinta. Hoje, é patrão… Mas, Vossa Excelência verá que ninguém lhe reconhece esse direito. Aqui, na sua terra, ninguém lho há-de reconhecer. Todos querem mandar, fazer o que quiserem. Obedecer, cumprir, ser mandado – ninguém quer. O trabalhador perdeu o honrado título de trabalhador, porque… não trabalha. Passa o dia a espreitar o caminho, a espreitar o céu e a consultar o relógio. Volta, meia volta, pede vinho. Come salgado para ter sede. Se lha não matam, no dia seguinte, procura outra casa. E não falta quem o receba, porque faltam braços. Os mais valentes foram para as minas e para as obras públicas. A lavoura ficou à mercê de quatro bêbedos…
Mas, que desgraçados! Sujos, andrajosos, sem fio branco na cama nem mais tarecos do que a caixa de pinho, cheia de mondongos. Quanto ganham, quanto vão entregar ao taberneiro. Pois, se o poupassem, podiam viver limpos, que os jornais vão sendo abonados. Mas, tanto luzem com muito como com pouco. São infelizes até esse ponto.
A lavoira, no tempo do fidalgo, foi uma coisa bonita. Com suas amarguras, mais dia, menos dia, cantava. Hoje, só bebe! O enxertador exige, a seu lado, um garrafão de vinho. O cavador finge que cava. Beber é que não finge. Bebe a rego cheio. O fidalgo verá que lhe não chega a novidade para lhe sustentar o vício. O vício e outras exigências…
Fez mal, fidalgo, em vir morrer à sua terra. Bem sei que é a sua paixão. Tanto, que nem se casou. O fidalgo, pelo que me disse, faz-me lembrar a bússola do mareante. O Norte, para o fidalgo, foi a sua aldeia. Bem está, que tem aqui os seus pais enterrados, passou aqui a infância, parte da mocidade. Aqui foi o seu reino. Toda a gente lhe quis como quem era. Mas, Fidalgo, tudo isso passou… Aos olhos de quem nos vir, tanto sou eu como Vossa Excelência. Não há distâncias. Só eu, que sou velho, ainda as sei guardar.
NOTA – Este texto foi compilado do livro “Montes Pintados”, de João de Araújo Correia.

Transcrito por Amândio G. Martins

2 comentários:

  1. Eu nasci dentro do triângulo geográfico de João Araújo Correia, Miguel Torga e de Aquilino Ribeiro.

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  2. Somos um país rico de pensadores sérios e de possibilidades para todos, senhor Amaral. Não o degradassem os políticos desonestos e incapazes, meros serventuários daqueles que só vêem nele uma mina/fonte de pingues lucros rápidos e fáceis. Num quadro destes, as massas trocam, por pura ignorância, valores perenes pelo imadiatismo dos modismos: comprar uns óculos caros para colocar na cabeça, um pulóver para amarrar à cinta, smartphones, sapatilhas, tudo último "grito", é que as faz felizes, mesmo que, para satisfazer esse exibicionismo, fiquem por pagar contas urgentes. O pior é quando chega o refluxo das decisões erradas...A conversa/monólogo do aldeão com o conterrâneo regressado, respondendo ao apelo telúrico, passou-se há muitos anos,mas pode ser ouvida hoje em qualquer lugar, de homens da mesma têmpera. Mas quê, são "vox clamantis in deserto".

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