Do vinho e do bretão
*Cristiane Lisita
Camillo
Castello Branco na sua obra O vinho do
Porto: Processo de uma bestialidade inglesa,
de 1903, escreve que um bretão anônimo teria lavrado na Westminster Review a condenação do vinho do Porto por “deletério
e empeçonhado por acetato de chumbo e outros tóxicos anglicidas”. Articula que o homem teria “rábidas
violências do estilo” confundindo o tanino com as “aflições dos venenos
metálicos”. E entre lágrimas relembrava “o
genuíno licor do Porto” que “ irrigara a
preciosa existência de grandes personagens da Grã-Bretanha, “famigerados
absorventes do nosso vinho”, lhes
conservando as faculdades mentais e
musculatura rija “nos seus membros locomotores, já apreensores e o resto”.
Falar das qualidades do vinho é uma
predominante do autor que ressalta que o referido indivíduo teria se encontrado
“dispéptico, com azias, relaxes intestinais, eructações cloacinas e o crânio
sempre flamejante como suja poncheira, com o encéfalo em combustão de conhaque e
casquinha de limão--isto depois de saturações copiosas dos vinhos adulterados
do Porto--_uma mixórdia negra_, diz ele aflito; mas não sabe decidir de pronto
se a degeneração está na raça saxônica, se no vinho português. Pelo menos e
provisoriamente considera-se envenenado, o bruto”.
A tônica de Castello Branco se nos apresenta
tão hodierna. Tal qual aquele que condenou o vinho, outro também bombardeou o povo
português. Mesmo na sua insensatez se
lembra dos séculos passados, da glória, das vinhas florindo e se espargindo desde
os xistos na Serra do Marão serpenteando pelo Douro. O “incombustível estômago do bretão” suga tudo
até o último gole: salários, pensões, empregos, dignidade. Mas “nem podia ser culpado da bebedeira”,
pois o vinho era, e continua tão bom. Um
legítimo Douro, provavelmente, “teria salvo
a vida do beberrão”.
Como
o vinho do Porto, conhecido por suas “incontaminadas tradições da probidade
antiga” o cidadão lusitano resiste. A
sua lisura, como os avelhantados “negócios no Porto”, permanece acesa. Na sua
façanha heroica, com a mesa tantas vezes vazia, ainda pode ouvir o tilintar das
taças, dos cálices aferrados aos grilhões de honestidade, caráter, simplicidade.
Um povo que sabe distinguir entre um autêntico vinho do Porto e a brutalidade e
bestialidade de certos bretões. Conforme coloca Castello: “Que litros de Porto envenenado
se calculam eficazes para degenerar um bretão até à dispepsia e às agonias da
morte?”.
*Cristiane Lisita é jornalista,
advogada, escritora.
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