quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

A alma do Macropinna


*Cristiane Lisita


                        “É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar? (...) Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a aves? (...) Contentai-vos com o mar e com nadar, e não quereis voar, pois sois peixes”(...) Embaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia   tão santa (...) o dito polvo é o maior traidor do mar”. O Sermão aos peixes, de Santo Antônio,  pregado pelo Padre Vieira antes de partir para Portugal em 1654,  se adapta bem aos homens de nosso tempo, a respeito de seus vícios e vaidades. Uma crítica à opressão dos indivíduos, que não possuem seus espaços na sociedade face à cobiça e arrogância de tantos outros.
                        


                       A extrapolação de valores pulsa latente nos dias atuais.  Não sei se o sal não salga ou se a terra não se deixa salgar, conforme questionava o Padre Vieira. Temos vivido uma onda de pessimismo, oscilando ao ceticismo, na qual as velhas carpideiras disseminam a miséria, a fome, a corrupção, o sofrimento como se tudo isto devesse fazer parte do nosso mundo. Como se a existência terrena nos condenasse ao claustro também da alma. Existência efêmera soprando sobre as águas deste mar, que acolhe peixes pequenos, peixes grandes, numa desigualdade imensa.



                        Há poucos dias me deparei com um acanhado Macropinna. Uma espécie de peixe raro. Um peixe acostumado a nadar em águas abertas e profundas. Eu o encontrei num sinaleiro, sentado numa cadeira de rodas, vendendo doces. Abri o vidro do carro para adentrar naquele universo com um simples bom dia. Ele me olhou perplexo, e falou da elegância do gesto atencioso. Mas aquilo era o mínimo que qualquer ser humano podia fazer: enxergar o outro... Quantas vezes o peixe de cabeça -e também coração- transparente teria singrado mares mirando tantas naus de frivolidades, soçobrando sem velas e sem qualquer nobreza? Quantas vezes o fulgor daqueles olhos verdes deixaram de esfuzilar, como se tivesse diluído na paisagem sombria? Mas aquele Macropinna me fisgou. O fulgor dos olhos penetrou a minha alma, e por um momento, não consegui seguir adiante. Uma osmose, uma sinergia que as anêmonas não perceberiam, pois se fecham a qualquer substancia que parece adversa à sua. Tudo o mais se lhe revela algo gelatinoso, sem forma, sem densidade.


                        Aquele Macropinna me fez entender o que disse um amigo: “apesar dos pesares, a vida ainda continua valendo a pena”, a despeito de todos os peixes grandes na sua ânsia de devorar os menores, a despeito da traição e da falsidade dos polvos.  Somente  eterno e verdadeiro amor é capaz de tirar a nossa sociedade do caos em que está inserida. Afinal, “quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem. (...) Quem pode nadar e quer voar, tempo virá em que não voe, nem nade”.



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