*Cristiane
Lisita
“É possível que sendo
vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar? (...) Dizei-me,
voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a aves? (...) Contentai-vos
com o mar e com nadar, e não quereis voar, pois sois peixes”(...) Embaixo desta
aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (...) o dito polvo é o maior
traidor do mar”. O Sermão aos peixes, de Santo Antônio, pregado pelo Padre Vieira antes de partir
para Portugal em 1654, se adapta bem aos
homens de nosso tempo, a respeito de seus vícios e vaidades. Uma crítica à opressão
dos indivíduos, que não possuem seus espaços na sociedade face à cobiça e
arrogância de tantos outros.
A extrapolação de
valores pulsa latente nos dias atuais. Não
sei se o sal não salga ou se a terra não se deixa salgar, conforme questionava
o Padre Vieira. Temos vivido uma onda de pessimismo, oscilando ao ceticismo, na
qual as velhas carpideiras disseminam a miséria, a fome, a corrupção, o
sofrimento como se tudo isto devesse fazer parte do nosso mundo. Como se a
existência terrena nos condenasse ao claustro também da alma. Existência efêmera
soprando sobre as águas deste mar, que acolhe peixes pequenos, peixes grandes, numa
desigualdade imensa.
Há poucos dias me
deparei com um acanhado Macropinna. Uma espécie de peixe raro. Um peixe acostumado
a nadar em águas abertas e profundas. Eu o encontrei num sinaleiro, sentado
numa cadeira de rodas, vendendo doces. Abri o vidro do carro para adentrar
naquele universo com um simples bom dia. Ele me olhou perplexo, e falou da
elegância do gesto atencioso. Mas aquilo era o mínimo que qualquer ser humano
podia fazer: enxergar o outro... Quantas vezes o peixe de cabeça -e também
coração- transparente teria singrado mares mirando tantas naus de frivolidades,
soçobrando sem velas e sem qualquer nobreza? Quantas vezes o fulgor daqueles
olhos verdes deixaram de esfuzilar, como se tivesse diluído na paisagem sombria?
Mas aquele Macropinna me fisgou. O fulgor dos olhos penetrou a minha alma, e
por um momento, não consegui seguir adiante. Uma osmose, uma sinergia que as
anêmonas não perceberiam, pois se fecham a qualquer substancia que parece adversa
à sua. Tudo o mais se lhe revela algo gelatinoso, sem forma, sem densidade.
Aquele Macropinna me fez
entender o que disse um amigo: “apesar dos pesares, a vida ainda continua
valendo a pena”, a despeito de todos os peixes grandes na sua ânsia de devorar
os menores, a despeito da traição e da falsidade dos polvos. Somente eterno e verdadeiro amor é capaz
de tirar a nossa sociedade do caos em que está inserida. Afinal, “quem quer
mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem. (...) Quem pode nadar e
quer voar, tempo virá em que não voe, nem nade”.
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