Há nomes de locais na cartografia do mundo e na dos sonhos, que
irrompem sem convite, a seu prazer, imiscuindo-se no pensamento quotidiano dos
seres.
Uns existem na realidade, outros, imaginários, existem
igualmente mas a níveis mais subtis.
“Mediterrâneo” existe, é um mar acolhedor porque fechado e de
boas águas, reconhecido como matriz, a “grande Mãe”, deste ciclo
civilizacional. “Lampedusa”, é uma ilha no meio deste mar, não sei se bela ou
não, imagino-a de muitas belezas, influenciado pelas leituras de romances com
qualidade.
Como os livros – mais ainda os de histórias improváveis bem
escritas – são as vitaminas dos sonhos, é perfeitamente natural que as suas
palavras influenciem muito a opinião dos leitores, porque eles não mentem e
quem lê acredita.
Tenho em grande consideração o Mediterrâneo e Lampedusa.
Naveguei suavemente no primeiro, a ilha ainda não a descobri, mas gostava um
dia.
Ficaria muito confortável – para não desarmar a ingenuidade que
ganhei nas leituras dos livros – em poder seguir na minha vida, sem ter que tropeçar
em notícias desanimadoras acerca de dois sítios que prezo.
Como é que o mar da vida se transforma de um dia para o outro no
mar da morte? Como é que uma ilha se torna a maior morgue franchisada da Europa?
Se pudesse escolher a realidade, optaria pela dos livros. Mas
não posso, porque a do dia a dia envia-me todos os meses por correio expresso,
a factura correspondente ao meu consumo de maldade neste momento de existência
que me calhou estar vivo.
É um serviço público universal: gaste-se ou não, temos que
pagar.
Como eu gostava de visitar Lampedusa e debicar um magnífico
vinho italiano, sentado num terraço virado ao porto, entretendo-me com as
manobras dos barcos de pesca nos momentos de saída para a faina do dia!
Mas esse cenário não passa de um sonho meu: a Lampedusa só
chegam mortos putrefactos. O mediterrâneo é a nossa última fronteira, e está cheia
de arame farpado.
O Mediterrâneo afoga os que querem ser livres, ou esse sonho que
fazem de nós. Não somos livres.
Eles não sabem que nós também estamos impedidos de fugir, prisioneiros
do irreal, vivemos a conta gotas o desmoronar do ideal da grande comunidade.
Fraternidade é uma utopia. As águas do Mediterrâneo estão
poluídas: dão à costa peixes-homem que não ganharam guelras para respirar.
Publicado hoje no Público, felizmente, sem cortes e ainda bem, porque é um belo texto, com conteúdo e actualidade.
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