quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

MORRESTE-ME LAMPEDUSA

Há nomes de locais na cartografia do mundo e na dos sonhos, que irrompem sem convite, a seu prazer, imiscuindo-se no pensamento quotidiano dos seres.

Uns existem na realidade, outros, imaginários, existem igualmente mas a níveis mais subtis.

“Mediterrâneo” existe, é um mar acolhedor porque fechado e de boas águas, reconhecido como matriz, a “grande Mãe”, deste ciclo civilizacional. “Lampedusa”, é uma ilha no meio deste mar, não sei se bela ou não, imagino-a de muitas belezas, influenciado pelas leituras de romances com qualidade.

Como os livros – mais ainda os de histórias improváveis bem escritas – são as vitaminas dos sonhos, é perfeitamente natural que as suas palavras influenciem muito a opinião dos leitores, porque eles não mentem e quem lê acredita.

Tenho em grande consideração o Mediterrâneo e Lampedusa. Naveguei suavemente no primeiro, a ilha ainda não a descobri, mas gostava um dia.

Ficaria muito confortável – para não desarmar a ingenuidade que ganhei nas leituras dos livros – em poder seguir na minha vida, sem ter que tropeçar em notícias desanimadoras acerca de dois sítios que prezo.

Como é que o mar da vida se transforma de um dia para o outro no mar da morte? Como é que uma ilha se torna a maior morgue franchisada da Europa?

Se pudesse escolher a realidade, optaria pela dos livros. Mas não posso, porque a do dia a dia envia-me todos os meses por correio expresso, a factura correspondente ao meu consumo de maldade neste momento de existência que me calhou estar vivo.

É um serviço público universal: gaste-se ou não, temos que pagar.

Como eu gostava de visitar Lampedusa e debicar um magnífico vinho italiano, sentado num terraço virado ao porto, entretendo-me com as manobras dos barcos de pesca nos momentos de saída para a faina do dia!

Mas esse cenário não passa de um sonho meu: a Lampedusa só chegam mortos putrefactos. O mediterrâneo é a nossa última fronteira, e está cheia de arame farpado.

O Mediterrâneo afoga os que querem ser livres, ou esse sonho que fazem de nós. Não somos livres.

Eles não sabem que nós também estamos impedidos de fugir, prisioneiros do irreal, vivemos a conta gotas o desmoronar do ideal da grande comunidade.

Fraternidade é uma utopia. As águas do Mediterrâneo estão poluídas: dão à costa peixes-homem que não ganharam guelras para respirar.


2 comentários:

  1. Publicado hoje no Público, felizmente, sem cortes e ainda bem, porque é um belo texto, com conteúdo e actualidade.

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