sábado, 17 de agosto de 2019


Cada povo amarga a sua história...


Visto à distância de sessenta anos, uma época a que hoje facilmente chamamos de fascismo, a opressão que, numa aldeia como a minha, as pessoas realmente sentiam era aquela imposta pelo calendário das tarefas agrícolas para garantir a subsistência: lavrar, semear/plantar, cultivar e colher, cuidar dos animais e observar os preceitos religiosos; estes, de facto, eram alegremente cumpridos, funcionando como desejada libertação das duras tarefas da semana, em que se deixavam de lado os andrajos diários e se vestia a “roupa nova” para ir à missa, de manhã, e ao terço a meio da tarde, que era facultativo, depois do que a juventude ficava livre para um bailarico ao som da concertina, logo que o padre se afastasse porque, para ele, rapazes e raparigas a dançar juntos soava-lhe a tentação do demónio.

As pessoas observavam as práticas religiosas a que a si próprias se obrigavam,  mas havia dois personagens que ninguém via assistir às cerimónias do culto -  embora toda a familia fosse assídua -  que eram o célebre “25”, famoso pastor/cabreiro, que tinha a desculpa de ter de vigiar o rebanho, e o velho Cabral, um lavrador cuja descendência era praticante, mas ele não queria nada com religiões, o que lhe dava uma aura de pessoa rara; quando o fim se aproximava, ainda tentaram que recebesse os últimos sacramentos, que recusou sempre, tendo como consequência a nega do padre acompanhar o funeral que, de resto, ele também tinha dito à família que não queria.

Isto para dizer que as populações sempre souberam organizar-se, se entreajudavam nas tarefas que requeriam mais braços, e viviam razoavelmente felizes num tempo em que não beneficiavam de nada por parte do Estado; quando alguém adoecia dizia-se que era um “andaço” e esperava-se que “andasse”, e quando a maleita era mesmo de morte, morria-se e pronto, porque o padre era mais acessível que o médico; os grandes atrasos de vida das populações entregues à sua sorte acontecem quando os governos, não ajudando, ainda criam problemas suplementares, como impor aos povos leis estúpidas.

Em El Salvador, uma rapariga que foi violada, engravidou do acto e foi impedida de abortar; tendo um parto prematuro, em que a criança nasceu morta, responsabilizaram-na por isso e condenaram-na a trinta anos de cadeia, pena que acabou por ser anulada porque outro juíz entendeu não haver provas suficientes; apesar de a autópsia demonstrar que não houve aborto provocado, revelando uma grave infecção que provocou a morte do bebé, os procuradores insistem que foi ela a responsável e querem repetir o julgamento! Mala suerte, rapariga...


Amândio G. Martins

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