quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Como eu gostaria de o ter escrito!

Mas como me falta o talento e a verve, ao menos parafraseio-o, com "dedicatória" a todos os nacional-populistas, aos guardadores de "nacos de terra", aos "patriotas de pacotilha", aos ingénuos puros, enfim, a todos os que para ser têm que ter, e com limites geográficos, levianamente ou com boas intenções. Vem inserto numa compilação de crónicas, escritas para o Guardian e agora juntas em livro- A Invenção Ocasional - pela "Relógio D´Água", com a assinatura da genial Elena Ferrante. O Fernando Pessoa disse algo de similar, mais resumidamenete

Nacionalidade Linguística

   Amo o meu país, mas não tenho nem espírito patriótico nem orgulho nacional algum. De resto digiro mal a pizza, consumo muito pouco esparguete, não falo alto, não gesticulo, odeio todas as máfias, não exclamo Mamma mia.Os caracteres nacionais parecem-me simplificações a combater. Para mim ser italiana esgota-se no facto de falar e escrever em língua italiana. Dito assim parece pouco, mas é realmente muitíssimo. Uma língua é um compêndio de História e Geografia, de vida material e espiritual, de vícios e virtudes não só de quem a fala, mas também de quem a falou ao longo dos séculos. As palavras, a gramática, a sintaxe, são um cinzel que esculpe o pensamento. Para já não falarmos da tradição literária, extraordinária refinaria da experiência em bruto em actividade há séculos e séculos, reservatório de inteligência e de técnicas expressivas, que me orgulho de ter por origem e que me formou. Por isso, quando digo que sou italiana porque escrevo em italiano quero dizer que o sou plenamente e ao mesmo tempo que estou disposta a atribuir-me uma nacionalidade. Os outros termos não me agradam ou assustam-me, sobretudo quando se tornam nacionalismo, chauvinismo, imperialismo e se servem ignobilmente da língua ou para se barricarem cultivando uma pureza tão inútil como impossível, ou impondo-a por meio de um poder económico abusivo e por meio de armas. Trata-se de um mal que aconteceu, acontece e acontecerá e que tende a anular as diferenças e por isso nos empobrece a todos. Prefiro a nacionalidade linguística como ponto de partida para dialogar, enquanto esforço visando o limite, olhar para lá das fronteiras, para lá de todas as fronteiras, para lá das de género antes do mais. Por isso, os meus únicos herois são as tradutoras, os tradutores ( adoro os bons conhecedores da arte da tradução simultânea) . Amo-os em particular quando são também leitores obstinados e propõem traduções. Graças a eles a italianidade corre o mundo enriquecendo-o e o mundo com as suas muitas línguas atravessa a italianidade, modifica-a. Aqueles que traduzem transportam nações para o interior de outras nações, são os primeiros a contactar com modos de sentir distantes. Até mesmo os seus erros são testemunhos de um esforço positivo. A tradução é a nossa salvação, faz-nos sair do poço dentro do qual completamente por acaso acabámos por nascer. Sou portanto italiana absolutament e com orgulho. Mas, se pudesse, mergulharia em todas as línguas e deixaria que todas elas me atravessassem. Até mesmo o Google Translator, com toda a sua longa lista de línguas de partida e de chegada, me conforta. Podemos ser muito mais do que nos calhou ser.

     Elena Ferrante, 3 de março de 2018

Notas finais: respeitei integralmente a pontuação do tradutor, Miguel Serras Pereira. Esperando não ter cometido nenhuma ilegalidade, a minha devida vénia à autora, à editora, ao tradutor, ao ilustrador Andrea Ucini e.... terminar dizendo que, não sendo meu, este "post" é dos que me deu maior prazer em colocar aqui no blogue!

Fernando Cardoso Rodrigues


1 comentário:

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