terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Na fronteira entre a vida e a morte


Aviso: tenho andado com este texto já há alguns anos, mas vou dá-lo a conhecer, pois já o vivi, aquando de um ‘leve’ AVC.
Texto: tenho muito receio ao entrar na Urgência de um qualquer hospital. Parece que de imediato perco a minha própria identidade, para passar a fazer parte de uma massa anónima, com uma fita numerada e colorida no pulso, a caminho de um incerto destino que pode levar-nos, antes e depois de padecimentos mil, ao fim de um qualquer mortal, para, depois, se jazer em rasa campa até à consumação total do corpo e do esquecimento terreno daquilo que fomos.
Várias e concretas visões do mundo hospitalar reduzem-me a níveis absurdamente frágeis. Tão frágeis e mais leves do que o peso de um simples fio de cabelo, deslocado do local de onde pertencia.
A ligação à vida passa a ser uma tenebrosa incerteza, tão ténue que, de tão ténue, a morte pode ser a única solução final.
Observando, enquanto não fui atendido, a este local da Urgência, chegam seres escangalhados, estropiados, com cores de dor, em fim de prazo temporal, alguns com problemas físicos provocados pelo percurso terreno, em demanda de que tudo de mau volte ao lugar do mundo saudável, o que, infelizmente, para muitos de nós não acontecerá jamais.
E continuo a observar: a azáfama já é grande. Chegam ambulâncias e carros particulares, e táxis.
Há um vozear ininteligível. Os bombeiros-maqueiros, os auxiliares de saúde, e enfermeiros prendem papeladas que deixam caídas sobre os doentes deitados nas macas.
E eu, cada vez me sinto mais acabrunhado e pálido, contrastando com a cor berrante dos casacões e dos bonés dos bombeiros – vermelha.
Vejo dependentes físicos mal vestidos, de chinelos, de pijama, de aspecto já cadavérico. Uns amparados ou em cadeiras de rodas.
E vou verificando que já não consigo escrever o número que tinha na pulseira-fita que me colocaram na triagem, e que a minha fala já não é a mesma, e que pendo mais para um lado, batendo com o ombro na parede. Sinto-me zonzo, muitíssimo pior do que um hipotético doido no meio de uma ponte.
E todos nós tentamos mitigar a dor física e a dor da incerteza na procura de saúde que nos quer abandonar.
E tudo isto, por vezes, na vã tentativa de se evitar a morte.


José Amaral

1 comentário:

  1. ...E aos nossos que ficam restará a tarefa/obrigação de nos mandar enterrar bem fundo e pronto!

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