… Vinte e três! O mancebo mergulha, dá algumas
braçadas e sai da piscina. Vinte e quatro! Outro, e a cena
repete-se. Vinte e cinco! Um matulão forte, atarracado, cara
bolachuda e avermelhada, braços e pernas entreabertos, de olhos
fixos na água não cumpre a ordem. Passados uns instantes, o cabo
Rodrigues, mais alto, repete: Vinte e cinco! Mas o vinte e cinco,
petrificado, continua absolutamente imóvel. O instrutor olha-o
atentamente e interroga: então pá! Tens medo? Ainda não tinha
acabado a frase e, finalmente, o Gordo (alcunha com que
inevitavelmente fora baptizado) atira-se de chapa, meia piscina
transborda e a Companhia irrompe numa risada geral. A barafustar e
aos gritos, ergue-se, com água por debaixo dos braços, bate com
toda a força, engasga-se, grita e toda a malta, com excepção do
cabo Rodrigues, ri perdidamente. O cabo da companhia que até era
bastante calmo, perante tão insólito comportamento e gáudio geral,
num misto de irritação e surpresa, grita poderosamente: silêncio!
E para o Gordo: Tem calma! Não batas na água! Tem calma! Calma! E
repetia com toda a força mesmo junto dele, calma! Não batas na
água! E o Gordo, com água a entrar-lhe pelo nariz e pela boca, cada
vez mais desesperado não via nem ouvia ninguém. Até que o cabo
Rodrigues, já em silêncio, assim como toda a Companhia, entrega a
pauta a um recruta, descalça-se num ápice e mesmo vestido, atira-se
à piscina, e com grande dificuldade, lá consegue acalmar e remover
o aflitíssimo grumete.
Perante tão desastrada prova de
natação, lógico, seria supor-se tratar-se o seu protagonista de
uma pessoa desequilibrada e medrosa. Puro engano! Ao longo da
recruta, provou exactamente o contrário. Aprendeu a nadar na
perfeição, esforçava-se ao máximo e conseguia cumprir, quase
sempre entre os primeiros, mesmo nos exercícios e provas mais
difíceis. Era, isso sim, um jovem brioso, determinado, forte e com
um enorme espírito de sacrifício que, por consequência, no final
da recruta, já pouco justificava a alcunha.
Natural de
uma aldeola ali para os lados das Caldas da Rainha onde os pais
possuíam uma típica taberna & mercearia, nos fins-de-semana em
que ia a casa, era uma alegria! Vinha sempre carregado com chouriços,
queijos, fruta, pão caseiro. A malta abonava-se, e a meio da semana,
nem o cheiro!
Bonacheirão, alma a condizer com o
corpanzil e o pessoal com a irreverência própria da idade, cheio de
sangue na guelra, abusava. Havendo um trio que se destacava: o Feijó,
o Ruço e o Viana. Além de serem os primeiros a abotoarem-se com os
mimos que a mãe lhe aviava, pregavam-lhe tantas partidas que aquele
mar de calmaria começou a dar mostras de que afinal poderia
encapelar-se. Tornar-se mesmo, numa violentíssima borrasca. Um dia,
depois de já lhes ter mandado uns berros para que o deixassem em
paz, à noite, estando a preparar-se para se deitar, vem o Ruço da
casa de banho com as mãos encharcadas, pé-ante-pé, e zás! Nas
costas do Gordo. Vira-se num ápice, o ruço esquiva-se, mas não
consegue evitar uma poderosa patada que o faz estatelar-se
fragorosamente contra os armários. A malta acorre, e o impertinente,
dorido, acabrunhado, levanta-se. Nisto chega o Viana e o Feijó. Mais
animado, ensaia uma indecisa investida. O Gordo, furioso, berra-lhe:
ah queres mais?... E vai-se a ele outra vez. Os outros dois tentam
intervir, o Feijó fica imediatamente fora de acção com um
violentíssimo soco na cara, o Viana bate em retirada e o Ruço tenta
fazer o mesmo mas não consegue. È filado pelo pescoço com as duas
mãos e içado. Entretanto, quase toda a companhia encavalita-se por
cima das camas, uns sobre os outros, ou espreitando por qualquer
nesga para não perder pitada do inesperado espectáculo. E o Ruço,
com a cara vermelha que nem um tomate, qual marioneta, esperneia,
tenta separar as mãos do Gordo, mas, evidentemente, em vão. A
poderosa tenaz vai-o asfixiando. Começa a perder as forças e a
malta o entusiasmo. Levantam-se vozes a dizer que já chega, que o
largue. Mas o Gordo, fora de si, não abranda. A gritaria é cada vez
maior e alguns agarram-lhe os braços tentando abri-los, dão-lhe
murros, pontapés, nada! O Ruço começa a ficar roxo e já mal se
mexe. O pânico é geral. A tragédia iminente. Até que o Moura, que
estava de plantão, providencialmente, teve uma ideia genial:
desembainha o sabre, e zás! Crava-lhe o bico numa nádega. O colosso
enraivecido Solta um berro lancinante, abre os braços, e o
“desgraçado”, num farrapo, estatela-se no chão.
Evidentemente
que todo este sururu agravado ainda pelo facto do Feijó ter ido
parar à enfermaria com um sobrolho aberto, teve que ser participado
pelo Moura. Todos chamados ao Comandante de Companhia que lhes passou
um valente raspanete e o corte de três fins-de-semana. Escusado será
dizer que nunca mais ninguém gozou o Gordo. Mas como aquilo não era
malta de rancores, os ressentimentos duraram pouco.
Terminada a
recruta, seguiu-se a instrução técnica elementar (ITE) das
diversas especialidades. Eu fui um dos que continuaram com o Gordo.
Fomos para a Escola de Máquinas. Terminado o ITE, separámo-nos
finalmente. Ele foi destacado para um draga-minas, o “S. Roque” e
eu para um patrulha, o “ Maio”. Mas continuámos a ver-nos com
frequência.
Um dia, fui ter com ele ao S. Roque, jantámos os
dois e fomos para Lisboa. Rumámos ao Bairro Alto, calcorreámos
becos e vielas, bebemos uns copos, divertimo-nos com as meninas e
regressámos à Base na última vedeta. Mas andava aborrecido. O S.
Roque navegava muito e ele enjoava ainda mais. “ Não nasci para
isto pá! Sou bicho de terra “. E disse-me que andava a pensar
concorrer aos fuzileiros. Tentei dissuadi-lo. Missões perigosíssimas
esperá-lo-iam na Guiné, no Niassa ou no Leste de Angola.
Determinado como era, não me deu ouvidos. Passado algum tempo, foi
mesmo para Vale de Zebro onde concluiu com distinção o curso de
fuzileiro especial, integrou uma companhia e partiu para a Guiné. E
eu, para Lorient, França. Completar a guarnição da fragata “
Comandante João Belo” que ali perto, em Nantes, havia sido
construída para a nossa Armada.
Tempos depois, a “João Belo”
fez uma viagem à Guiné. À nossa chegada a Bissau, estava uma
grande comitiva que vinha saber as últimas da Metrópole, dar-nos um
abraço, conviver connosco. Eram camaradas nossos das guarnições do
Comando Naval, dos Patrulhas, das Lanchas de Desembarque e das
Companhias de fuzileiros ali estacionados em comissão de serviço. O
Gordo não apareceu. Numa roda de amigos, perguntei porquê. Estaria
de serviço? Estaria no mato? Ninguém respondeu e o semblante dos
nossos amigos mudou radicalmente. Passados uns instantes, o Almeirim
(um marinheiro fuzileiro telegrafista filho da minha escola) disse:
ah vocês ainda não sabem?!... Fez menção de continuar, mas
calou-se e foi sentar-se num cabeço de olhar perdido na imensidão
do Atlântico.
Em contraste com o doce marulhar da leve
ondulação beijando o costado da “João Belo”, longínquo, do
negrume da mata e da bolanha, chegava-nos mortiço, o lúgubre
crepitar da metralha.
Tenso, nervosíssimo, encharcado em suor,
lentamente, o Almeirim levantou-se, aproximou-se do grupo e murmurou:
numa emboscada… A voz embargou-se-lhe, as lágrimas que tentava
reter, brotaram abundantes e explodiu num choro profundo.
Convulsivo.
Amparámos o amigo, chorámos o outro e amaldiçoámos
a guerra.
A primavera marcelista não dissipava as trevas do
longo inverno salazarista e, também ali, Abril raiava.
Francisco
Ramalho, ex marinheiro CM, o “Farinha”
Corroios, Março de
2010
Com este rosário de situações reais vividas pelo Francisco Ramalho duranta o tempo militar obrigatório passado também no ex-Ultramar, eu também voltei a esse tempo. Voltei a Teixeira Pinto,a Bafatá, a Contuboel, a Sonaco, a Sumbundo, e a Bissau, de onde, no Aquartelamento da Amura, não via chegar o tempo para regressar à Metrópole.
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