O
MERCADO
A vida
individual e social dos portugueses está impregnada pela filosofia inerente ao
processo político-económico que caracteriza as relações de mercado. Quero dizer
deste modo que tudo se rege pela venda e pela compra, com o objectivo último do
lucro, ainda que à custa dos valores que deram identidade a este povo secular.
Negoceia-se
com a vida e com a morte, com a abundância e com a miséria, com o necessário e
com o supérfluo, aproveitando a fragilidade dos pobres, materiais ou culturais,
por vezes no limite do que é legalmente válido ou moralmente aceitável.
O mercado
passou a ser o determinante imperativo das nossas atitudes porque foi assumindo,
de forma insidiosa, a condução e a justificação de todos os comportamentos,
mesmo quando afrontam os valores éticos que dão suporte à nossa estrutura
social. De regulador das relações económicas, o mercado tornou-se o dominador
das consciências, verdadeiro fundamentalismo sócio-político, onde está
justificada a venda das armas que fazem as guerras, das drogas que destroem as
vidas e das pessoas que perdem a dignidade.
Ora, o
epicentro das relações mercantis é a concorrência, conceito que tem implícita a
competição que conduzirá à venda, indispensável para o ganho, em oposição à
perda do competidor. Se as relações sociais fossem comandadas pela frieza da
matemática pura, este facto não seria senão um mero exercício de aritmética
simples. Mas a natureza humana é, felizmente, mais complexa do que a estrutura
de um computador e nela se entrecruzam valores e sentimentos que dão sentido às
conquistas da inteligência e da vontade. Então, as leis do mercado passam a ser
comandadas por outras condicionantes que escapam à lógica do deve/haver e
deturpam as finalidades do negócio.
Para vender,
impõem-se regras anti-éticas, como recentemente ouvi afirmar a um jornalista em
face da relação desporto/comunicação social. Com uma transparência que não
deixou dúvidas, afirmou as diversas perversões que se impõem aos órgãos de
informação para aumentar as respectivas tiragens. A justificação de que, por
essa via, se garante o emprego explica que possa ser possível fragilizar a
postura de um profissional que pretenda manter íntegro o respectivo código de
vida.
Percebe-se
que esta fragilização conduzirá à diminuição da auto-estima e a uma progressiva
perda de todos os restantes valores fundamentais à afirmação de uma
personalidade e ao sentido da existência.
Vendem-se os
serviços, os produtos e a alma por idênticas razões, o que tem ainda maior
gravidade quando se trata de áreas especialmente sensíveis como a da doença.
Nesta área, a solicitude e a solidariedade não têm preço e não deveriam ser
vendidas, mas, tragicamente, tende-se a dimensionar as acções clínicas pelo
custo respectivo, como se se tratasse de bens de consumo comum.
Num encontro
a que assisti, na Póvoa de Varzim, um deputado da Assembleia da República
perguntava se será justo pedir a um cidadão, por hipótese auferindo um salário
de 600 mil escudos mensais, que contribua para a manutenção de um hospital onde
provavelmente não irá nunca, por ter outras disponibilidades justificadas pelas
posses económicas.
Esta pergunta
transporta a lógica do mercado e atenta contra a filosofia que estrutura a
civilização a que pertencemos. “Ajudai-vos uns aos outros” é um dos princípios
que permitiram a sobrevivência da humanidade com as características que tem
hoje e há-de resistir à corrosão de um feroz individualismo subjacente àquela
lógica.
Continuaremos
todos a precisar de todos para garantir a realização do projecto de vida de
cada um e só assim ultrapassaremos as angústias de um modelo económico que está
enredado nas respectivas contradiões.
A produção
para o consumo, com a finalidade do lucro pelo lucro, é a trave-mestra da
economia de mercado, pelo que se acreditou ser assim que se iria produzir
riqueza e emprego. Mas verificamos hoje que o modelo, mesmo apoiado na exploração
dos recursos naturais dos países considerados pobres, já não garante a
respectiva coerência interna e entrou em rotura.
De facto, por
exemplo, a Irlanda é o país da União Europeia com melhores índices de
recuperação económica, com aumento significativo do investimento, especialmente
externo, e da produção industrial e, no entanto, não conseguiu travar o
crescimento do desemprego.
Maior
desemprego significa menor coesão social, aumento das diversas marginalidades,
menor consumo interno e, a prazo, a inversão da recuperação económica
conseguida.
Penso que, de
novo, só uma conjugação de esforços com um profundo sentido de cooperação e
complementaridade pode vir a restabelecer o equilíbrio na relação entre os
diversos povos e permitir o modelo económico justo para que a paz seja
possível.
Assim também
pensa o Clube de Roma, instituição cujo prestígio não pode ser posto em causa,
quando escreveu na Conferência Anual de 1992 que, para um mundo melhor, se
torna imperativo estabelecer uma comunidade internacional baseada na liberdade,
na igualdade de oportunidades, na democracia, na tolerância e na solidariedade
universal.Só deste modo a vida na Terra se poderá construir com esperança e não
com ameaças, evitando a rotura da coesão mundial, objectivada nos conflitos já
hoje evidentes em vários pontos do globo.
NOTA – Este
texto pertence ao prof. doutor Nuno Grande, então director do Instituto de
Ciências Biomédicas Abel Salazar e saíu no Jornal de Notícias.
Transcrito
por Amândio G. Martins
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