terça-feira, 8 de setembro de 2015

LAISSER FAIRE

                                         O MERCADO
A vida individual e social dos portugueses está impregnada pela filosofia inerente ao processo político-económico que caracteriza as relações de mercado. Quero dizer deste modo que tudo se rege pela venda e pela compra, com o objectivo último do lucro, ainda que à custa dos valores que deram identidade a este povo secular.
Negoceia-se com a vida e com a morte, com a abundância e com a miséria, com o necessário e com o supérfluo, aproveitando a fragilidade dos pobres, materiais ou culturais, por vezes no limite do que é legalmente válido ou moralmente aceitável.
O mercado passou a ser o determinante imperativo das nossas atitudes porque foi assumindo, de forma insidiosa, a condução e a justificação de todos os comportamentos, mesmo quando afrontam os valores éticos que dão suporte à nossa estrutura social. De regulador das relações económicas, o mercado tornou-se o dominador das consciências, verdadeiro fundamentalismo sócio-político, onde está justificada a venda das armas que fazem as guerras, das drogas que destroem as vidas e das pessoas que perdem a dignidade.
Ora, o epicentro das relações mercantis é a concorrência, conceito que tem implícita a competição que conduzirá à venda, indispensável para o ganho, em oposição à perda do competidor. Se as relações sociais fossem comandadas pela frieza da matemática pura, este facto não seria senão um mero exercício de aritmética simples. Mas a natureza humana é, felizmente, mais complexa do que a estrutura de um computador e nela se entrecruzam valores e sentimentos que dão sentido às conquistas da inteligência e da vontade. Então, as leis do mercado passam a ser comandadas por outras condicionantes que escapam à lógica do deve/haver e deturpam as finalidades do negócio.
Para vender, impõem-se regras anti-éticas, como recentemente ouvi afirmar a um jornalista em face da relação desporto/comunicação social. Com uma transparência que não deixou dúvidas, afirmou as diversas perversões que se impõem aos órgãos de informação para aumentar as respectivas tiragens. A justificação de que, por essa via, se garante o emprego explica que possa ser possível fragilizar a postura de um profissional que pretenda manter íntegro o respectivo código de vida.
Percebe-se que esta fragilização conduzirá à diminuição da auto-estima e a uma progressiva perda de todos os restantes valores fundamentais à afirmação de uma personalidade e ao sentido da existência.
Vendem-se os serviços, os produtos e a alma por idênticas razões, o que tem ainda maior gravidade quando se trata de áreas especialmente sensíveis como a da doença. Nesta área, a solicitude e a solidariedade não têm preço e não deveriam ser vendidas, mas, tragicamente, tende-se a dimensionar as acções clínicas pelo custo respectivo, como se se tratasse de bens de consumo comum.
Num encontro a que assisti, na Póvoa de Varzim, um deputado da Assembleia da República perguntava se será justo pedir a um cidadão, por hipótese auferindo um salário de 600 mil escudos mensais, que contribua para a manutenção de um hospital onde provavelmente não irá nunca, por ter outras disponibilidades justificadas pelas posses económicas.
Esta pergunta transporta a lógica do mercado e atenta contra a filosofia que estrutura a civilização a que pertencemos. “Ajudai-vos uns aos outros” é um dos princípios que permitiram a sobrevivência da humanidade com as características que tem hoje e há-de resistir à corrosão de um feroz individualismo subjacente àquela lógica.
Continuaremos todos a precisar de todos para garantir a realização do projecto de vida de cada um e só assim ultrapassaremos as angústias de um modelo económico que está enredado nas respectivas contradiões.
A produção para o consumo, com a finalidade do lucro pelo lucro, é a trave-mestra da economia de mercado, pelo que se acreditou ser assim que se iria produzir riqueza e emprego. Mas verificamos hoje que o modelo, mesmo apoiado na exploração dos recursos naturais dos países considerados pobres, já não garante a respectiva coerência interna e entrou em rotura.
De facto, por exemplo, a Irlanda é o país da União Europeia com melhores índices de recuperação económica, com aumento significativo do investimento, especialmente externo, e da produção industrial e, no entanto, não conseguiu travar o crescimento do desemprego.
Maior desemprego significa menor coesão social, aumento das diversas marginalidades, menor consumo interno e, a prazo, a inversão da recuperação económica conseguida.
Penso que, de novo, só uma conjugação de esforços com um profundo sentido de cooperação e complementaridade pode vir a restabelecer o equilíbrio na relação entre os diversos povos e permitir o modelo económico justo para que a paz seja possível.
Assim também pensa o Clube de Roma, instituição cujo prestígio não pode ser posto em causa, quando escreveu na Conferência Anual de 1992 que, para um mundo melhor, se torna imperativo estabelecer uma comunidade internacional baseada na liberdade, na igualdade de oportunidades, na democracia, na tolerância e na solidariedade universal.Só deste modo a vida na Terra se poderá construir com esperança e não com ameaças, evitando a rotura da coesão mundial, objectivada nos conflitos já hoje evidentes em vários pontos do globo.
NOTA – Este texto pertence ao prof. doutor Nuno Grande, então director do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar e saíu no Jornal de Notícias.

Transcrito por Amândio G. Martins

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