sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Sobre as virtudes e limitações da democracia: a propósito do direito a opiniar em público


Em Portugal, os órgãos de comunicação social desvirtuam e pervertem as funções, que só a eles cabem, relativas à abertura de espaços para o debate público, impedindo assim, numa área essencial da vida em sociedade, que tenhamos uma democracia saudável e plena de vitalidade.
  
Este grave défice democrático, de que só raros falam, explica por que razão nasceram entre nós tantos blogues ao surgir a Internet, criados por pessoas (e é, por exemplo, o caso d’A Voz da Girafa, um blog entre milhares) que entenderam ser essa a única hipótese que tinham para poderem exercer um direito que, em teoria, todo o cidadão tem: o de intervir publicamente na sociedade a que pertence, contribuindo com chamadas de atenção, ideias, aspirações e opiniões, ou partilhando com os outros as informações privilegiadas de que possa dispor sobre algum assunto de interesse público. E constitui, também, um dos motivos pelos quais a imprensa em papel tem visto os seus leitores fugirem-lhe crescentemente, sem conseguir imaginar maneira de os reter ou que os faça voltar atrás.

É que no nosso país, depois de termos estado mais de 40 anos sujeitos a um regime de Censura que impunha grandes restrições e distorções a esse direito fundamental, temos agora, desde 1976, uma Constituição a estabelecer amplos direitos de cidadania neste domínio, mas cujos efeitos práticos são nulos ou quase nulos para a generalidade da população. Passou a haver, de facto, liberdade de expressão e de opinião para aqueles (pouquíssimos) a quem os media, discricionariamente, abrem as suas portas e “dão voz” – mas só para esses. Porque, no que se refere à imensa maioria da população, o que se verifica, neste Portugal formalmente democrático, é aquilo que o filósofo José Gil, no seu livro «Portugal, Hoje: O Medo de Existir» (2004) bem descreveu – e cujos excertos mais significativos eu tomo a liberdade de aqui transcrever, com uma vénia ao autor:


«Trinta anos depois do estabelecimento da democracia, como funciona o espaço público em Portugal? A constatação imediata é a de que não existe (…) substituído pelo espaço dos média que, em Portugal, não constitui um espaço público. (…) Não há debate político (…) Nos jornais e na rádio, os debates confinam-se a trocas de opiniões e argumentos entre homens (…) sempre de um partido (…) ou entre comentadores, pretensos “opinion makers” que dialogam constantemente entre si, em círculo fechado. Muitos dos políticos são também comentadores (…), o que suscita um circuito abafador e redundante: sempre as mesmas vozes e a mesma escrita nos mesmos tons, com os mesmos argumentos (…) como se as ideias políticas se reduzissem a (…) estratégias partidárias. Se a política é “chata” em Portugal, se os portugueses estão “fartos dos políticos”, isso não se deve apenas à sua incompetência, mas também ao próprio universo do debate político em que nada de novo, de inovador, de diferente, de forte, de original e estimulante surge para abalar os espíritos. (…) Não há espaço público porque este está nas mãos de umas quantas pessoas cujo discurso não faz mais do que alimentar a inércia e o fechamento sobre si próprios da estrutura das relações de força que elas representam. (…) um pequeno sistema estático que trabalha afanosamente para a sua manutenção. (…) A função dos média consiste em abrir o espaço da “comunicação social” (…); ora, (…) a televisão portuguesa é, como toda a gente sabe (…) uma pura miséria, uma máquina de fabricação de iliteracia. E a rádio e a imprensa (…) fecham constantemente as aberturas mínimas, as fendas e brechas por onde algum ar fresco, alguma força livre pudessem passar ainda. (…) O espaço público, essencial à democracia, foi-me roubado. Roubado pelo sistema partidário, pelo sistema representativo, pelo sistema mediático… (…) Nada mudou. (…) Ausência de excessos, mediania em tudo, limitações legitimadas pelos “costumes” (…) tudo isto, que era sustentado pelo regime de Salazar, é hoje suportado pela norma única invisível do bom senso. (…) É pois sempre mais conveniente continuarmos a não assumir responsabilidades, a não afrontar opiniões contrárias, a fugir dos problemas… (…) Sobretudo, recusar os conflitos. (…)»

Note-se que este retrato da realidade mediática nacional, que considero fiel, foi elaborado até finais de 2004. De então para cá, os nossos media, em vez de melhorarem, quanto a mim pioraram muito. Por um processo gradual, que foi alastrando a um número cada vez maior de órgãos de comunicação, a boa qualidade que alguns deles haviam tido foi rareando, à medida que iam passando a só transmitir informações, comentários e debates sobre a actualidade desde que o pudessem fazer como matéria de espectáculo, sob forma de entretenimento (supunham, certamente, que assim seduziriam mais eficazmente quem “consumisse os seus produtos”) e, sobretudo, em moldes tais que não corressem o risco de poder melindrar os seus anunciantes e patrocinadores. Quer se trate de televisão, rádio ou imprensa, passou a ser esse o modelo de ‘comunicação social’ que se generalizou, e estes os novos “pilares” do seu funcionamento. Não parece haver, entre nós, excepções a esta regra, pois não consta que algum deles haja escapado à referida lógica de actuação. Pode, pois, dizer-se que passámos a viver numa “civilização do espectáculo” e do entretenimento. Aliás, quem reflicta sobre isto poderá constatar que quase todos os aspectos da nossa vida social já foram contagiados, e estão a ser afectados por esta recente mutação civilizacional.

Naturalmente, e porque há sempre promiscuidades e dependências mútuas entre o universos mediático e o político, a metamorfose entretanto sofrida por este último seguiu um processo que se assemelha bastante ao anterior, com a actividade político-partidária a tornar-se, também ela, cada vez mais um espectáculo, e os seus agentes a serem condicionados e moldados por uma constante preocupação: a de nada fazerem ou dizerem que possa ser considerado “politicamente incorrecto”, isto é, susceptível de levar a ‘opinião pública’ a mostrar, em sondagens, que esta ou aquela “incorrecção” fez mudar a sua intenção de voto. Daí a enorme importância que passou a ser atribuída aos ‘spin doctors’ (“especialistas” em comunicação e imagem, a meio-caminho entre o jornalismo e a política), que hoje são tidos como os assessores mais indispensáveis em qualquer governo democrático ou partido da oposição (duas recentes e boas séries televisivas – “Borgen”, dinamarquesa, e “Os Influentes”, francesa – ilustraram muito bem isto mesmo).
Se, por exemplo, atentarmos no que se tem passado no PS, em especial desde que António Costa arredou e substituiu na liderança António José Seguro, poderemos ver que Seguro fazia melhor política em termos de estratégia e clareza de propósitos, ao passo que Costa é melhor político em termos de espectáculo e de popularidade. Não por acaso, os media sempre apoiaram Costa e sempre atacaram Seguro, em quaisquer circunstâncias. E é bem possível que os erros cometidos por Costa ultimamente se devam ao facto de a sua spin doctor ser a mesma pessoa que tinha por função aconselhar Sócrates, quando este teve todo o poder e fez o que fez…   


3.Setembro.2015                                   

                                                                         António S. Carvalho

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