Em
Portugal, os órgãos de comunicação social desvirtuam e pervertem as funções,
que só a eles cabem, relativas à abertura de espaços para o debate público, impedindo
assim, numa área essencial da vida em sociedade, que tenhamos uma democracia saudável
e plena de vitalidade.
Este
grave défice democrático, de que só raros falam, explica por que razão nasceram
entre nós tantos blogues ao surgir a Internet, criados por pessoas (e é, por
exemplo, o caso d’A Voz da Girafa, um blog entre milhares) que entenderam ser
essa a única hipótese que tinham para poderem exercer um direito que, em
teoria, todo o cidadão tem: o de intervir publicamente na sociedade a que
pertence, contribuindo com chamadas de atenção, ideias, aspirações e opiniões, ou
partilhando com os outros as informações privilegiadas de que possa dispor
sobre algum assunto de interesse público. E constitui, também, um dos motivos
pelos quais a imprensa em papel tem visto os seus leitores fugirem-lhe
crescentemente, sem conseguir imaginar maneira de os reter ou que os faça
voltar atrás.
É
que no nosso país, depois de termos estado mais de 40 anos sujeitos a um regime
de Censura que impunha grandes restrições e distorções a esse direito
fundamental, temos agora, desde 1976, uma Constituição a estabelecer amplos
direitos de cidadania neste domínio, mas cujos efeitos práticos são nulos ou quase
nulos para a generalidade da população. Passou a haver, de facto, liberdade de
expressão e de opinião para aqueles (pouquíssimos) a quem os media,
discricionariamente, abrem as suas portas e “dão voz” – mas só para esses. Porque,
no que se refere à imensa maioria da população, o que se verifica, neste
Portugal formalmente democrático, é aquilo que o filósofo José Gil, no seu livro
«Portugal, Hoje: O Medo de Existir» (2004) bem descreveu – e cujos excertos
mais significativos eu tomo a liberdade de aqui transcrever, com uma vénia ao
autor:
«Trinta anos depois do estabelecimento da
democracia, como funciona o espaço público em Portugal? A constatação imediata
é a de que não existe (…) substituído pelo espaço dos média que, em Portugal,
não constitui um espaço público. (…) Não há debate político (…) Nos jornais e
na rádio, os debates confinam-se a trocas de opiniões e argumentos entre homens
(…) sempre de um partido (…) ou entre comentadores, pretensos “opinion makers”
que dialogam constantemente entre si, em círculo fechado. Muitos dos políticos
são também comentadores (…), o que suscita um circuito abafador e redundante:
sempre as mesmas vozes e a mesma escrita nos mesmos tons, com os mesmos
argumentos (…) como se as ideias políticas se reduzissem a (…) estratégias
partidárias. Se a política é “chata” em Portugal, se os portugueses estão
“fartos dos políticos”, isso não se deve apenas à sua incompetência, mas também
ao próprio universo do debate político em que nada de novo, de inovador, de
diferente, de forte, de original e estimulante surge para abalar os espíritos.
(…) Não há espaço público porque este está nas mãos de umas quantas pessoas
cujo discurso não faz mais do que alimentar a inércia e o fechamento sobre si
próprios da estrutura das relações de força que elas representam. (…) um
pequeno sistema estático que trabalha afanosamente para a sua manutenção. (…) A
função dos média consiste em abrir o espaço da “comunicação social” (…); ora,
(…) a televisão portuguesa é, como toda a gente sabe (…) uma pura miséria, uma
máquina de fabricação de iliteracia. E a rádio e a imprensa (…) fecham
constantemente as aberturas mínimas, as fendas e brechas por onde algum ar
fresco, alguma força livre pudessem passar ainda. (…) O espaço público,
essencial à democracia, foi-me roubado. Roubado pelo sistema partidário, pelo
sistema representativo, pelo sistema mediático… (…) Nada mudou. (…) Ausência de
excessos, mediania em tudo, limitações legitimadas pelos “costumes” (…) tudo
isto, que era sustentado pelo regime de Salazar, é hoje suportado pela norma
única invisível do bom senso. (…) É pois sempre mais conveniente continuarmos a
não assumir responsabilidades, a não afrontar opiniões contrárias, a fugir dos
problemas… (…) Sobretudo, recusar os conflitos. (…)»
Note-se
que este retrato da realidade mediática nacional, que considero fiel, foi elaborado
até finais de 2004. De então para cá, os nossos media, em vez de melhorarem, quanto
a mim pioraram muito. Por um processo gradual, que foi alastrando a um número
cada vez maior de órgãos de comunicação, a boa qualidade que alguns deles
haviam tido foi rareando, à medida que iam passando a só transmitir informações,
comentários e debates sobre a actualidade desde que o pudessem fazer como
matéria de espectáculo, sob forma de entretenimento (supunham, certamente, que
assim seduziriam mais eficazmente quem “consumisse os seus produtos”) e,
sobretudo, em moldes tais que não corressem o risco de poder melindrar os seus
anunciantes e patrocinadores. Quer se trate de televisão, rádio ou imprensa, passou
a ser esse o modelo de ‘comunicação social’ que se generalizou, e estes os
novos “pilares” do seu funcionamento. Não parece haver, entre nós, excepções a
esta regra, pois não consta que algum deles haja escapado à referida lógica de
actuação. Pode, pois, dizer-se que passámos
a viver numa “civilização do espectáculo” e do entretenimento. Aliás,
quem reflicta sobre isto poderá constatar que quase todos os aspectos da nossa vida
social já foram contagiados, e estão a ser afectados por esta recente mutação civilizacional.
Naturalmente,
e porque há sempre promiscuidades e dependências mútuas entre o universos
mediático e o político, a metamorfose entretanto sofrida por este último seguiu
um processo que se assemelha bastante ao anterior, com a actividade
político-partidária a tornar-se, também ela, cada vez mais um espectáculo, e os
seus agentes a serem condicionados e moldados por uma constante preocupação: a
de nada fazerem ou dizerem que possa ser considerado “politicamente
incorrecto”, isto é, susceptível de levar a ‘opinião pública’ a mostrar, em
sondagens, que esta ou aquela “incorrecção” fez mudar a sua intenção de voto.
Daí a enorme importância que passou a ser atribuída aos ‘spin doctors’ (“especialistas”
em comunicação e imagem, a meio-caminho entre o jornalismo e a política), que
hoje são tidos como os assessores mais indispensáveis em qualquer governo democrático
ou partido da oposição (duas recentes e boas séries televisivas – “Borgen”,
dinamarquesa, e “Os Influentes”, francesa – ilustraram muito bem isto mesmo).
Se,
por exemplo, atentarmos no que se tem passado no PS, em especial desde que
António Costa arredou e substituiu na liderança António José Seguro, poderemos
ver que Seguro fazia melhor política em termos de estratégia e clareza de
propósitos, ao passo que Costa é melhor político em termos de espectáculo e de
popularidade. Não por acaso, os media sempre apoiaram Costa e sempre atacaram
Seguro, em quaisquer circunstâncias. E é bem possível que os erros cometidos
por Costa ultimamente se devam ao facto de a sua spin doctor ser a mesma pessoa
que tinha por função aconselhar Sócrates, quando este teve todo o poder e fez o
que fez…
3.Setembro.2015
António S. Carvalho
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