“As palavras”...
“Falsificado até aos ossos e mistificado, escrevi
alegremente sobre a nossa infeliz condição. Dogmático, duvidava de tudo,
excepto de ser o eleito da dúvida; restabelecia com uma das mãos o que destruía
com a outra e tomava a inquietação como a garantia da minha segurança; era
feliz. Mudei.
(...)
Voltei a ser o viajante sem bilhete que era aos sete anos: o
condutor entrou no compartimento e fita-me, menos severo que outrora: na
realidade, só deseja ir-se embora, deixar-me concluír a viagem em paz; basta
que eu lhe dê uma desculpa válida, não importa qual, e ele aceitá-la-á.
Infelizmente não acho nenhuma e nem tenho, aliás, vontade de a procurar.
Desinvestí-me, mas não abjurei das ordens: continuo a
escrever. Que outra coisa fazer? É o meu hábito e é, também, o meu ofício.
Durante muito tempo tomei a pena por uma espada; agora, conheço a nossa
impotência. Não importa: faço e farei livros; são necessários; sempre servem,
apesar de tudo. A cultura não salva nada nem ninguém, não justifica. Mas é um
produto do homem.
Quanto ao mais, o velho edifício ruinoso, a minha impostura,
é também o meu carácter: livramo-nos de uma neurose mas não nos curamos de nós.
Gastos, obliterados, humilhados, encantoados, passados em silêncio, todos os
traços da criança permanecem no quinquagenário. A maior parte do tempo
abatem-se na sombra, espreitam: no primeiro instante, de inadvertência,
levantam a cabeça e penetram, disfarçados, no dia claro: pretendo sinceramente
escrever apenas para o meu tempo, mas irrita-me a minha notoriedade presente;
não é a glória, pois estou vivo, e só isso basta para desmentir os meus velhos
sonhos; tendo perdido as minhas probabilidades de morrer desconhecido, gabo-me
às vezes de viver mal conhecido.
(...)
O que eu amo na minha loucura é o facto de me ter protegido,
desde o primeiro dia, contra as seduções da élite; nunca me julguei feliz
proprietário de um “talento”; a minha única preocupação era salvar-me – nada
nas mãos, nada nos bolsos – pelo trabalho e pela fé. Desta feita, a minha pura
opção não me elevava acima de ninguém: sem equipamento, sem ferramentas, dei-me
inteiro à acção para inteiro me salvar.
Se arrumo a impossível salvação para o quarto das velharias, o que me
resta? Apenas um homem que os vale a todos e a quem, por sua vez, valem
quaisquer outros”.
Nota – transcrito do livro anexo por
Amândio G. Martins