domingo, 8 de novembro de 2020

Fernando Pessoa

 

Infeliz ajudante de guarda-livros...

 

 

“”Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: a inteligência que há nessa estupidez.

A monotonia das vidas vulgares é, aparentemente, pavorosa. Estou almoçando neste restaurante vulgar, e olho, para além do balcão, para a figura do cozinheiro, e, aqui ao pé de mim, para o criado já velho que me serve, como há trinta anos, creio, serve nesta casa. Que vidas são as destes homens? Há quarenta anos que aquela figura de homem vive quase todo o dia numa cozinha; tem umas breves folgas; dorme relativamente poucas horas; vai de vez em quando à terra, de onde volta sem hesitação e sem pena; armazena lentamente dinheiro lento, que se não propõe gastar; adoeceria se tivesse que retirar-se da sua cozinha, definitivamente, para os campos que comprou na Galiza; está em Lisboa há quarenta anos e nunca sequer foi à Rotunda, nem a um teatro. Casou não sei como nem porquê, tem quatro filhos e uma filha, e o seu sorriso, ao debruçar-se de lá do balcão em direcção a onde eu estou, exprime uma grande, uma solene, uma contente felicidade. Se a a sente é porque verdadeiramente a tem.

 

E o criado velho que me serve, e que acaba de depor ante mim o que deve ser o seu milionésimo café da sua deposição de café em mesas? Tem a mesma vida que a do cozinheiro, apenas com a diferença de quatro ou cinco metros – os que distam da localização de um na cozinha para a localização do outro na parte de fora da casa de pasto. No resto, tem dois filhos apenas, vai mais veses à Galiza, já viu mais Lisboa que o outro, e conhece o Porto, onde esteve quatro anos, e é igualmente feliz.

 

Revejo, com um pasmo assustado, o panorama destas vidas, e descubro, ao ir ter horror, pena, revolta deles, que quem não tem nem horror, nem pena, nem revolta, são os próprios que teriam direito a tê-las, são os mesmos que vivem essas vidas. É erro central da imaginação literária: supor que os outros são nós e que devem sentir como nós.Mas, felizmente para a humanidade, cada homem é só quem é, sendo dado ao génio, apenas, o ser mais alguns outros.

 

Tudo, afinal, é dado em relação àquilo em que é dado.Um pequeno incidente de rua, que chama à porta o cozinheiro desta casa, entretém-no mais que me entretém a mim a contemplação da ideia mais original, a leitura do melhor livro, o mais grato dos sonhos inúteis. E, se a vida é essencialmente monotonia, o facto é que ele escapou à monotonia mais do que eu. E escapa à monotonia mais facilmente do que eu. A verdade não está com ele nem comigo, porque não está com ninguém; mas a felicidade está com ele deveras”.

 

 

Transcrito  por Amândio G. Martins

 

 

2 comentários:

  1. Não sei se venho a despropósito, mais a mais porque também não sei se consegui "entrar" na razão da sua paráfrase de FP. Lembrei-me, no entanto, do que li num prólogo do "Livro de Cesário Verde" que conta que o poeta se candidatou a um concurso público, mas por procuração passada a um amigo, já que tinha "vergonha" de o fazer pessoalmente. E o que mais pediu a esse amigo foi que, nunca por nunca, o identificasse como " o sr. Verde, escriturário".
    Falamos da mesma "coisa"?...

    ResponderEliminar
  2. Não vejo similitude, porque Pessoa não se envergonhava do modo de vida que lhe permitia pagar o quarto alugado e a comida, assim como a bebida, o tabaco e outras drogas, já que da escrita não recebia, naquele tempo, nada que se visse; e para demonstrar o que penso, transcrevo o que segue: "Penso, muitas vezes, em como eu seria se, resguardado do vento da sorte pelo biombo da riqueza, nunca houvesse sido trazido, pela mão moral do meu tio, para um escritório de Lisboa, nem houvesse ascendido dele para outros, até este píncaro barato de bom ajudante de guarda-livros, com um trabalho como uma certa sesta e um ordenado que dá para estar a viver; mais vale, na verdade, o patrão Vasques que os Reis de Sonho; mais vale, na verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques impossíveis".
    O que a mim me fascina, e me levou a passar para aqui esse trecho do "Livro do Desassossego", é que Fernando Pessoa, ao contrário daqueles que apoucam a vida das grandes massas anónimas, por disciplinadamente cumprirem as funções para que são contratadas nas empresas, em vez de incendiarem as fábricas e matarem os patrões, ele esforça-se por compreender e não anatematizar...

    ResponderEliminar

Caro(a) leitor(a), o seu comentário é sempre muito bem-vindo, desde que o faça sem recorrer a insultos e/ou a ameaças. Não diga aos outros o que não gostaria que lhe dissessem. Faça comentários construtivos e merecedores de publicação. E não se esconda atrás do anonimato. Obrigado.

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.