domingo, 15 de novembro de 2020

Fernando Pessoa

 

Do homem de acção...

 

 

“O mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade. A qualidade principal na prática da vida é aquela qualidade que conduz à acção, isto é, a vontade. Ora há duas coisas que estorvam a acção – a sensibilidade e o pensamento analítico, que não é, afinal, mais que o pensamento com sensibilidade. Toda a acção é, pela sua natureza, a projecção da personalidade sobre o mundo externo, e como o mundo externo é grande e principal parte composto por entes humanos, segue-se que essa projecção da personalidade é essencialmente o atravessarmo-nos no caminho alheio, o estorvar, ferir e esmagar os outros, conforme o nosso modo de agir.                    (...)

 

O exemplo máximo do homem prático, porque reune a extrema concentração da acção com a sua extrema importância, é  a do estratégico.Toda a vida é guerra, e a batalha é, pois, a síntese da vida. Ora o estratégico é um homem que joga com vidas como o jogador de xadrês com peças do jogo. Que seria do estratégico se pensasse que cada lance do seu jogo põe noite em mil lares e magoa em três mil corações? Que seria do mundo se fôssemos humanos? Se o homem sentisse deveras, não haveria civilização. A arte serve de fuga para a sensibilidade que a acção teve que esquecer.

 

Todo o homem de acção é essencialmente animado e optimista porque quem não sente é feliz. Conhece-se um homem de acção por nunca estar mal disposto. Quem trabalha, embora esteja mal disposto, é um subsidiário da acção; pode ser na vida, na grande generalidade da vida, um guarda-livros, como eu sou na particularidade dela. O que não pode ser é um regente de coisas ou de homens. À regência pertence a insensibilidade. Governa quem é alegre porque para ser triste é preciso sentir.

 

O patrão Vasques fez hoje um negócio em que arruinou um indivíduo doente e a família. Enquanto fez o negócio esqueceu por completo que esse indivíduo existia, excepto como parte contrária comercial. Feito o negócio, veio-lhe a sensibilidade. Só depois, é claro, pois, se viesse antes, o negócio nunca se faria. “Tenho pena do tipo”, disse-me ele. “Vai ficar na miséria”. Depois, acendendo o charuto, acrescentou: “Em todo o caso, se ele precisar qualquer coisa de mim”, - entendendo-se qualquer esmola – “eu não esqueço que lhe devo um bom negócio e umas dezenas de contos”.

 

O patrão Vasques não é um bandido: é um homem de acção. O que perdeu o lance neste jogo pode, de facto, pois o patrão Vasques é um homem generoso, contar com a esmola dele no futuro. Como o patrão Vasques são todos os homens de acção – chefes industriais e comerciais, políticos, homens de guerra, idealistas religiosos  e sociais, grandes poetas e grandes artistas, mulheres formosas, crianças que fazem o que querem. Manda quem não sente.Vence quem pensa só o que precisa para vencer”.

 

 

Transcrito por Amândio G. Martins

 

 

 

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