Fala uma chinesa...
“Toquei as cordas da antiga harpa e elas soltaram um
som fino e melancólico; se tocada
debaixo de árvores, ao luar, dá um canto suave e maravilhoso, mas nesta casa
silenciosa, tão pouco familiar, o canto fica abafado e fraco. Toquei uma
pequena ária da época de Lung e meu marido levantou a cabeça: “É muito bonito”
- disse com amabilidade - Sinto-me feliz
por saberdes tocar. Hei-se comprar-vos um piano um destes dias” . Depois,
entregou-se novamente à leitura.
Demorei-me um pouco vendo-o ler o seu horrível livro, e
continuei a tanger as cordas, muito suavemente, sem saber o que elas cantavam. Nunca
vira sequer um piano. Que faria eu com esse objecto estranho?
(...)
Depois de um longo silêncio, meu marido olhou para mim com muita atenção:
“Kwei Lan” -
disse -
e o meu coração deu um salto; pela primeira
vez meu marido chamava-me pelo meu nome. Que tinha ele para me dizer,
finalmente? Ergui timidamente os olhos, e ele continuou: “Ando desde o nosso
casamento para vos perguntar se não desejais desligar os vossos pés. Isso
faz-vos mal a todo o corpo.Vêde como são os vossos pés”.
Pegou num lápis e desenhou, numa folha do livro, um horrendo
pé nú, todo encarquilhado. Como é que ele sabia? Eu nunca ligara os pés diante
dele. Nós, as mulheres chinesas, nunca os mostramos. Mesmo de noite, usamos peúgas
de linho branco. –Como sabeis? Perguntei-lhe ofegante. –Porque eu sou um doutor
que fez os seus estudos no Ocidente - respondeu. Também desejo que desaperteis os
vossos pés pela razão de não ser belo, e por já ter passado a moda.
Meu marido sorriu ligeiramente e olhou-me com benevolência,
mas eu retirei apressadamente os pés para debaixo da cadeira. Não é belo? E eu que sempre tivera tanta vaidade nos meus
pés pequeninos! Durante toda a minha infância, era a minha própria mãe que
presidia aos banhos de água quente e à operação de atar as ligaduras, sempre
mais e mais apertadas todas as noites. Quando, de tanto sofrer, eu chorava,
pedia-me que pensasse no dia em que meu marido havia de elogiar a beleza dos meus
pés.
Recordava-me de todas aquelas noites agitadas, daqueles dias
inteiros durante os quais eu não queria comer nem brincar, e em que ficava
sentada à beira da cama balançando os meus pobres pés para aliviar a pressão do
sangue. E agora, depois de tudo ter suportado, até ao dia em que a dor cessou
de vez, saber que ele os acha feios”!
Nota – Transcrito do livro anexo por
Amândio G. Martins
Mais uma boa "parábola".
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