domingo, 5 de abril de 2020


Fala uma chinesa...


“Toquei as cordas da antiga harpa e elas soltaram um som  fino e melancólico; se tocada debaixo de árvores, ao luar, dá um canto suave e maravilhoso, mas nesta casa silenciosa, tão pouco familiar, o canto fica abafado e fraco. Toquei uma pequena ária da época de Lung e meu marido levantou a cabeça: “É muito bonito” -  disse com amabilidade - Sinto-me feliz por saberdes tocar. Hei-se comprar-vos um piano um destes dias” . Depois, entregou-se novamente à leitura.

Demorei-me um pouco vendo-o ler o seu horrível livro, e continuei a tanger as cordas, muito suavemente, sem saber o que elas cantavam. Nunca vira sequer um piano. Que faria eu com esse objecto estranho?   (...)  Depois de um longo silêncio, meu marido olhou para mim com muita atenção: “Kwei Lan” -  disse -  e o meu coração deu um salto; pela primeira vez meu marido chamava-me pelo meu nome. Que tinha ele para me dizer, finalmente? Ergui timidamente os olhos, e ele continuou: “Ando desde o nosso casamento para vos perguntar se não desejais desligar os vossos pés. Isso faz-vos mal a todo o corpo.Vêde como são os vossos pés”.

Pegou num lápis e desenhou, numa folha do livro, um horrendo pé nú, todo encarquilhado. Como é que ele sabia? Eu nunca ligara os pés diante dele. Nós, as mulheres chinesas, nunca os mostramos. Mesmo de noite, usamos peúgas de linho branco. –Como sabeis? Perguntei-lhe ofegante. –Porque eu sou um doutor que fez os seus estudos no Ocidente -  respondeu. Também desejo que desaperteis os vossos pés pela razão de não ser belo, e por já ter passado a moda.

Meu marido sorriu ligeiramente e olhou-me com benevolência, mas eu retirei apressadamente os pés para debaixo da cadeira. Não é belo?  E eu que sempre tivera tanta vaidade nos meus pés pequeninos! Durante toda a minha infância, era a minha própria mãe que presidia aos banhos de água quente e à operação de atar as ligaduras, sempre mais e mais apertadas todas as noites. Quando, de tanto sofrer, eu chorava, pedia-me que pensasse no dia em que meu marido havia de elogiar a beleza dos meus pés.

Recordava-me de todas aquelas noites agitadas, daqueles dias inteiros durante os quais eu não queria comer nem brincar, e em que ficava sentada à beira da cama balançando os meus pobres pés para aliviar a pressão do sangue. E agora, depois de tudo ter suportado, até ao dia em que a dor cessou de vez, saber que ele os acha feios”!


Nota – Transcrito do livro anexo por
Amândio G. Martins


1 comentário:

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