segunda-feira, 6 de abril de 2020


Os idosos não devem prescindir de nada...


...Segundo Valter Hugo Mãe, no seu texto de domingo no JN, seria um horror convencer os velhos de uma coisa destas, referindo-se à frase de Ramalho Eanes, que tem feito “carreira” nas redes: “Nós, os velhos, já passamos por isto e temos de dar o exemplo. Se chegarmos ao hospital temos de ceder o ventilador ao homem que tem mulher e filhos”.

“Existe um estigma inaceitável a ser criado com a passagem despreparada desta ideia – diz Hugo Mãe – Ninguém pode entrar num hospital imediatamente derrotado pela obrigação de abdicar de um tratamento. Simplesmente não é suportável culpabilizar a vontade de viver. Sinceramente, espero que os velhos que amo não tenham ouvido Ramalho Eanes, para que em instante algum se sintam obrigados a uma decisão que, se competir a alguém, deve ser aos médicos”.

“O que isto denuncia não é tanto a heroicidade de alguns, é antes a desfaçatez de um mundo que desinvestiu nos serviços públicos de saúde e que hoje pede ao cidadão a mais obscena condição de mártir. Um mártir por um capitalismo que fez quanto pôde para desviar a saúde para o universo privado”...


Amândio G. Martins

11 comentários:

  1. A sua citação de Valter Hugo Mãe (VHM) deixou-me um pouco "surpreso". Porque ou ela é um texto que o Amândio pensa dever ser dado ao nosso "livre pensamento" para o dissecar/ignorar/contrapor, ou é uma concordãncia com ele ou... as duas coisas. Como não sei, vou ater-me somente ao que VHM diz e discordar numa parte importante. E digo "numa parte" porque há algo com que estou de acordo. Na parte teórica do escrito ( que o é quase todo...), mesmo que o escritor vilacondense se exceda em considerações políticas algo abusivas e mesmo deslocadas. Bom, a nossa discordância vem, desde logo, de como interpretámos as palavras de Ramalho Eanes. Enquanto ele as ouviu como um "conselho moral" aos velhos, eu li-as como uma posição pessoal assumida, que nada obriga a serem seguidas. Mas há outro ponto, esse efectivamente de polémica ética: enquanto VHM fala em abstracto ( como muito boa gente...) e teórico, eu - como, penso, o general RE - estou a pensar em casos concretos de que dou um exemplo casuístico: só há um ventilador diponível e existem dois seres humanos, de 40 e 75 anos, ambos candidatos à ventilação mecãnica e ambos com história clínica similarmente "limpa", sendo, portanto, a esperança do tempo de vida, o único factor distintivo. O que fazer? Notem que não se trata de retirar um ventilador a um para dar a outro! Eu digo o que faria, se fosse o médico "decisor": ventilaria o mais novo. E mais, se fosse o doente de 75 ( a minha idade...), com medo, muito medo, só pediria à minha família que não inculpasse o(s) meu(s) colega(s) que me tivessem preterido na - dolorosa e difícil e ética - escolha. Disse.

    ResponderEliminar
  2. Acrescento que o "caso inventado" por mim, já tem sido "caso real" em Espanha e Itália. Não existiu em Portugal? Ainda bem, mas Portugal não será um "escolhido por Deus" e aqui o nome pandemia diz bem por onde o coronavírus "viaja".

    ResponderEliminar
  3. Ora aqui está um daqueles assuntos que nem com um bisturi bem afiado se consegue uma perfeita escalpelização. Começo pela parte pragmática da questão, a da cedência a outrem, ou a escolha de beneficiários de ventiladores, em caso de escassez.
    1. Nada tenho contra a cedência voluntária por parte de quem quer que seja, velhos ou novos.
    2. Tenho tudo contra a obrigação, mesmo que meramente moral, de alguém prescindir ou se ver espoliado da máquina salvadora.
    Mas parece-me estarmos a passar por cima de estados psicológicos não menos relevantes:
    1. Como se sente, a posteriori, o resgatado por alguém que foi coagido a ceder-lhe a sua “bóia de salvação”?
    2. Como se sente a família de alguém que faleceu por ter prescindido (voluntariamente ou não) do aparelho salvador?
    Muitíssimas outras questões se poderiam levantar.
    Quanto à questão teórico/política, aqui não tenho muitas dúvidas: estou com Valter Hugo Mãe. Ao contrário do Fernando, não vejo como “abusivas e deslocadas” as considerações de VHM, sobretudo denunciando a “desfaçatez de um mundo” que erigiu o financeirismo (saravá! A. Pedro Ribeiro) como o altar do mundo (saravá! Papa Francisco), e um “capitalismo que fez quanto pôde para desviar a saúde para o universo privado” (sem saravá nenhum, mas lembrando aqui o Passos, a Maria Luís e o Vítor Gaspar, mas também o cativacionista Centeno).
    Para terminar: não gostaria de estar na pele de um médico que tivesse de fazer a escolha. E penso ser imperioso que se dotem os médicos, ou quem de direito, de regras e critérios claros quanto ao desempenho de tão dolorosa tarefa. Não sei se já existem, mas é o mínimo que se pode exigir.

    ResponderEliminar
  4. Do que transcrevi de Valter Hugo Mãe dá para perceber a sua preocupação: que um gesto de altruísmo individual não pode condicionar outros ao mesmo; e "que em instante algum os velhos se sintam obrigados a uma decisão que, se competir a alguém, deve ser aos médicos". Está a morrer gente, velhos e novos, por falta de equipamento um pouco por todo lado; ainda ontem vi na TV espanhola apresentarem pessoas a rondar os cem anos que se curaram, e notícias de outras, inclusivé médicos e enfermeiros, muitos mais novos, que estão a morrer aos milhares. Quanto a quem deve ser dada prioridade, perante a escassez de equipamento, imagino a luta interior de um médico, quando for obrigado a decidir, que me parece nunca dever ser porque um é novo e outro velho, mas qual deles terá mais chance de escapar...

    ResponderEliminar
  5. Aos dois:
    O que eu disse sobre a interpretação das palavras de Ramalho Eanes, faz perceber que a ilação retirada será (é) conforme àquela. Eu não vos imponho o que penso, mas não desisto, éticamente, do decidir quando se está no "fio da navalha".
    Ao Amândio:
    Mas então -a propósito das suas últimas linhas- o "... mas qual deles terá mais chance de escapar...", não é precisamente o que coloquei no exemplo concreto de que me servi?!...
    Ao José:
    Quanto aos primeiros 1 e 2, estamos de acordo, mas... falta um 3 que é o que coloquei e que é diferente da "cedência" e da "obrigação"... Quanto aos segundos 1 e 2 aqui vai o que penso: o 1 está respondido nas linhas anteriores deste comentário, julgo eu, mas acrescento que poderá sentir-se.... grato; quanto à minha família, ela sabe da minha posição enquanto doente com 75 anos de idade. Fica para o fim a "questão teórico-política" que me parece, no CASO VERTENTE, secundária e, mais, me parece uma "linha de fuga" ao debate deste caso em que "só há um para dois" e há que tomar uma decisão. Ou este caso não se porá numa sociedade comunista ou anarquista ( sociedade?) aquando dum pandemia como esta? Quero com isto defender o capitalismo financeiro? Sabe bem que não e, por várias vezes e em público, o manifestei no que à saúde concerne (e não só), No fundo o que peço é: atenhamo-nos ao caso concreto, não "divaguemos", por medo ou conveniência discursivo-política e... tomemos a decisão correcta. Que me parece ser a que defendo, como médico e eventual doente.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Em questões como a presente, que atingem civilizações, resolver casuísticamente pode não ser a melhor ideia. Em minha opinião, há que dar alguma abrangência às formas de actuação, tanto mais que, como já vemos, há que verter na lei muitas delas. Não me custará saber que as autoridades, sejam elas quem forem, definam com clareza as regras gerais a aplicar nestes casos, quanto mais não seja para defesa das mentes e das consciências dos decisores no terreno.
      Quanto ao segundo 1: grato, sim; mas não repeso, contrito?
      Relativamente ao 2, falei do que me parece - e posso estar redondamente enganado - serem as famílias em geral, sem concretizar qualquer uma que saia da tendência geral, como, espero, ser a minha própria.

      Eliminar
    2. Esperando não estar a ser o "peguilhento" que volta sempre, gostaria de dizer uma coisa ao José: a inferência do particular para o geral, como diz, é realmente abusiva e irreal. Somente que aqui o casuístico é o cerne do problema ou mesmo o problema todo. Senão vejamos: havendo ventiladores disponíveis, não há problema nenhum pois os necessitados deles, vão "entrando", independentemente da idade e nem me passa pela cabeça que possam ser "guardados! Assim como -já o disse- desligar o do velho para o dar ao novo! Resta então o(s) caso(s) reais, que já se puseram em Itália e Espanha, de ter que haver escolha.
      Sei que ambos estamos bem intencionados, mas lemos o assunto de maneira diversa. E este é difícil e candente. Sei que isto não lhe servirá de muito mas, olhe, esta minha posição valeu-me o "levar porrada" de muitos (mais , muitas...) companheiros da APRE, no grupo fechado desta associação no facebook. O que também não me espantou muito dado que, na APRE, o "idadismo" é algo que assombra muita gente, quase ( na minha óptica, já lá manifestada algumas vezes) quase "dá razão" aos que praticam esse ápodo. Eu tenho o hábito de não lamentar a minha idade nem nela me refugiar, mas sei que sou.... velho.
      NOTA: o último parágrafo é somente um apêndice e não entra na nosso debate.

      Eliminar
  6. Quando digo que deve ser dada ajuda ao que tiver mais hipóteses de saír vivo, estou a pensar que há novos, muitos, que, pela sua vida desregrada, estão mais rotos que muito velho, tendo por isso menos resistência a enfermidades graves...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Isso quase soa a punição… nórdica.

      Eliminar
    2. Também ao Amãndio peço desculpa por voltar à liça mas a consideração que tenho por si (e pelo José) não sobreleva a discordância honesta que convosco tenho neste caso. Embora, ela não seja assim tão grande e simplesmente diverjamos na escolha dos nossos argumentos, quase parecendo que os tentamos arranjar para defender uma posição prévia.
      E se não é correcto ilacionar do particular para o geral, para fazer lei, igualmente não o é divagar sobre o geral e muito menos sobre "particulares", como é o caso do seu "... há novos, muitos, ... mais rotos que muito velho..."(sic). Claro que há, mas o caso que descrevi como exemplo era muito claro: "ambos tinham uma história clínica "limpa" e só a idade os distinguia para a decisão de quem ventilar. Caso? Sim, mas similar a alguns reais e em que é necessário decidir rápido e no "fio da navalha".
      E - perdoe-me a "ironia" - temos que ser rápidos senão morrem os dois...

      Eliminar
  7. Creio que, nesta troca de opiniões, nenhum de nós esteve aqui a pelejar para levar a "bicicleta"; de resto, num tema como este, o Dr. Fernando ganhá-la-ia com uma perna às costas...

    ResponderEliminar

Caro(a) leitor(a), o seu comentário é sempre muito bem-vindo, desde que o faça sem recorrer a insultos e/ou a ameaças. Não diga aos outros o que não gostaria que lhe dissessem. Faça comentários construtivos e merecedores de publicação. E não se esconda atrás do anonimato. Obrigado.

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.